A adaptação de Roger Schmidt
Tornou-se consensual que um treinador estrangeiro tem de se adaptar a Portugal, mas é um erro. Como se viu com Keizer no Sporting, o que Schmidt tem de fazer é garantir que não precisa de adaptação.
Roger Schmidt foi ontem formalizado como treinador do Benfica, tornando-se o primeiro estrangeiro a ocupar-se da equipa desde que, em Maio de 2009, o espanhol Quique Flores dirigiu o seu último jogo antes de ser substituído por Jorge Jesus. Os estrangeiros, que durante muitos anos eram vistos como imprescindíveis para levar uma equipa ao título de campeã, não têm sido moda neste século: o último a ganhar a Liga foi o holandês Co Adriaanse, no FC Porto, em 2006. E a melhor explicação para isso está no facto de os candidatos terem deixado de apostar neles e não numa tese de inadaptação a uma realidade tão especial como a nossa. Aliás, o que os últimos anos nos mostraram até foram mais casos de adaptação excessiva, como o de Marcel Keizer no Sporting, por exemplo.
Sempre que chega aí um treinador estrangeiro, a tese é a de que precisa de mudar. Que tem de se adaptar a uma Liga onde para se ser campeão é necessária uma percentagem anormal de pontos – e isso é verdade, como se viu nos 89,2% de pontos ganhos pelo FC Porto de Conceição, mas não creio que os treinadores, portugueses ou estrangeiros, encarem os jogos na perspetiva de só fazerem os pontos que são precisos para ganhar a prova. Querem, isso sim, ganhar sempre. Que tem de se adaptar aos campos pequenos, aos maus relvados, aos jogos a horas impróprias em vésperas de dia de trabalho – e por isso quase sem público –, aos erros de arbitragem, como se tudo isso fosse um exclusivo da nossa Liga. Que tem de se adaptar a equipas hiper-defensivas, que chegam a defender com linhas de seis homens atrás, e perceber como se lhes dá a volta. Ora esta, não sendo uma particularidade exclusiva da nossa Liga, é uma realidade que não abunda em campeonatos de topo, onde as equipas, mesmo as que lutam para não descer, costumam ter mais argumentos ofensivos do que os nossos pequenos e fazem uso deles. Mas aqui, o que se exige a quem chega não é adaptação. É mais convicção e capacidade para entender de que meios precisa para resolver cada puzzle que se lhe apresenta de acordo com as suas próprias ideias.
Tendo Portugal tantos treinadores campeões no estrangeiro, seria estranho e chauvinista que defendessemos que um estrangeiro não pode ser campeão em Portugal. O que se passou ultimamente foi que as melhores equipas têm confiado o talento a treinadores portugueses. No século XX, isso era raro. Se nos ativermos apenas ao Campeonato Nacional da I Divisão – aquele que teve início em 1938 – houve gente de Leste, ingleses, brasileiros, mas poucos portugueses a ganhar a prova. Augusto Silva (Belenenses, 1946), Cândido de Oliveira (Sporting, 1948 e 1949), Juca (Sporting, 1962), Mário Lino (Sporting, 1974), Mário Wilson (Benfica, 1976), José Maria Pedroto (FC Porto, 1978 e 79), Fernando Mendes (Sporting, 1980), Artur Jorge (FC Porto, 1985, 1986 e 1990), Toni (Benfica, 1989 e 1994), António Oliveira (FC Porto, 1997 e 1998) e Fernando Santos (FC Porto, 1999) foram as honrosas exceções. Foram 17 campeões portugueses em 51 Ligas no século XX, o que corresponde a rigorosamente um terço. Daí para cá, a raridade passou a ser um técnico estrangeiro campeão: tivemos apenas três em 23 campeonatos neste século. Foram eles Laszlo Bölöni (Sporting, 2002), Giovanni Trapattoni (Benfica, 2005) e Co Adriaanse (FC Porto, 2006). De 66,6% de sucesso, os técnicos estrangeiros passaram para 13,0%.
A nossa Liga terá mudado assim tanto, de forma a que os estrangeiros tenham deixado de se adaptar? A resposta é não. Ou pelo menos não mudou de um modo tão repentino. O que se viu foi, isso sim, o nascimento de uma geração de bons treinadores portugueses e uma troca nas preferências dos decisores. Porque tem sido raro haver candidatos ao título entregues a um estrangeiro. Aliás, tem sido raro termos treinadores estrangeiros, de todo – na época que está a terminar, se considerarmos o angolano Lito Vidigal como um dos nossos (e ele já vive em Portugal desde criança...), só cá tivemos os espanhóis Júlio Velásquez e Pako Ayestarán no Marítimo e no CD Tondela, ambos demitidos antes do fim da competição. No que toca aos candidatos ao título, o FC Porto só se virou para fora uma vez desde que demitiu Adriaanse, em 2006, para se colocar nas mãos de Julen Lopetegui. O Benfica não o fazia desde a saída de Quique Flores, em 2009. E só o Sporting – que em bom rigor nestes anos nem sempre foi candidato real – tem olhado para fora. Desde a saída de Bölöni, em 2003, só por lá passaram o belga Frankie Vercauteren (uns meses de má memória, em 2012/13) e o neerlandês Marcel Keizer, em 2018/19. Ora Keizer foi a prova final de que o que os estrangeiros precisam quando chegam a Portugal não é adaptação mas sim convicção e uma boa apreciação da realidade.
Keizer foi contratado pelo Sporting para poder desenvolver a aposta da equipa principal na formação e apresentar um futebol ofensivo, da escola do Ajax, de que era representante. À chegada, foi o que fez. O Sporting de Keizer fez 30 golos nos primeiros sete jogos, ganhando-os todos. Ao oitavo jogo, surgiu a primeira derrota: 0-1 em Guimarães, a deixar os leões a cinco pontos do FC Porto, que era líder ao fim de 14 jornadas. O choque com a realidade fê-lo encarar a necessidade de adaptação, que é aquilo que muitos defender ser a necessidade primeira dos treinadores estrangeiros. E dos sete jogos seguintes, o Sporting já só ganhou quatro, marcando 12 golos. Dos sete que se seguiram, ainda mais “adaptado”, Keizer venceu apenas dois, com onze golos marcados. Dir-me-ão que aquele Sporting não era propriamente um candidato ao título – tinha passado uma mão cheia de meses sobre a reconstrução de um plantel dizimado pelas sequelas de Alcochete. Mas parece hoje inegável que aquele Sporting começou a perder quando, confrontado com uma realidade que não moldara – Keizer chegou em Novembro, já com plantel formado – o seu treinador traiu as suas ideias em nome de uma adaptação que julgou necessária.
Roger Schmidt não terá essa desculpa. Chega em Maio, tem muito tempo para olhar para uns quase 60 jogadores à disposição e perceber do que precisa para fazer vingar as suas ideias. O pior que pode acontecer ao Benfica de 2022/23 é que, daqui a uns meses, o alemão ache que tem de adaptar. Será sinal de que a fase fundamental do trabalho não lhe correu bem e que a época estará condenada ao fracasso.
Mais do que adaptação, a um treinador estrangeiro pede-se disrupção, ideias novas que abalem o status quo e trilhem um novo caminho para a vitória. Aliás, os treinadores estrangeiros que marcaram o futebol nacional foram aqueles que trouxeram ideias às quais se mantiveram fiéis e conseguiram, até, fazer evoluir o nosso futebol. Para ir buscar um estrangeiro que tenha de se acomodar ao que já temos mais vale apostar num treinador português que não precise desse alegado tempo de adaptação. Ora, tempo é precisamente o que Schmidt não tem. Precisa de avaliar um plantel com o triplo dos jogadores necessários, perceber quem pode integrar da formação, trabalhar as suas ideias e, no imediato, conseguir o apuramento para a champions. Haverá paciência em caso de percalço, num universo benfiquista que está há tanto tempo sem conquistar um único troféu? Rui Costa terá a força para enfrentar as forças de pressão e manter a sua aposta, mesmo que neste primeiro ano os resultados não surjam?
Bom dia. Pequena correção, o Porto depois de Co Adriaanse, ainda teve nas épocas 2014/16 o treinador, de má memória para os portistas, Julen Lopetegui.