Uma massagem ao ego
Luís Filipe Vieira pode até estar preocupado com os caminhos pelos quais Rui Costa leva o Benfica. Mas a motivação principal para a entrevista é ego. É provar que com ele nada disto teria acontecido.
Palavras: 1479. Tempo de leitura: 7 minutos (áudio no meu Telegram)
A entrevista de Luís Filipe Vieira à CMTV, na qual fez críticas violentíssimas a Rui Costa, o atual presidente do Benfica, deve ser vista sob mais de uma perspetiva. Uma delas é a da discordância do antigo líder acerca dos caminhos pelos quais Rui Costa levou o clube depois de ele de lá ter saído. Outra, a que nos manda para o futuro, é a da situação em que isto deixa um clube já de si fraturado à conta de resultados infelizes. Mas a primeira, que na minha forma de ver as coisas é a fundamental, prende-se com a razão que levou o ex-presidente a falar agora e a falar desta maneira. E essa é simples de explicar. É ego. É a preocupação com o que dele vão dizer as gerações futuras de benfiquistas. Foi o homem providencial que fez um estádio sem dinheiro, que construiu o Seixal, ou o vigarista que arrastou o nome do Benfica para uma série de processos judiciais e para uma relação duvidosa com José Veiga e, depois, Jorge Mendes? Não deixa de ser sintomático que, tendo feito coisas muito boas e coisas muito más, Vieira tenha sentido a necessidade de pedir desculpa aos benfiquistas por uma única ação – se calhar uma das poucas pelas quais não tinha que se desculpar. Vieira pediu perdão por ter preparado Rui Costa como sucessor e não precisava de o fazer, porque na verdade nunca lhe terá passado pela cabeça entregar-lhe o poder. Na cabeça dele ninguém seria capaz de fazer as coisas como ele entende que elas devem ser feitas.
Conheci Luís Filipe Vieira ainda como presidente do FC Alverca e por isso entendi na perfeição a estratégia desenhada pelo João Marcelino, que na primavera de 2001 era o meu diretor, no Record, quando quis apresentá-lo à nação benfiquista. Vieira já era muito aquilo que é hoje: extraordinariamente competente nos negócios, um facilitador como há poucos, conhecedor e utilizador de todas as vias para chegar aos fins pretendidos, algumas delas menos canónicas. Parecia-me um líder que fazia gala em trabalhar pela calada mas que queria acima de tudo que lhe reconhecessem o mérito – o que implicava que descobrissem o que ele tinha feito. Após uma primeira incursão pelo Brasil, para contratar Roger e André, depois de tomar posse, em Novembro de 2000, o presidente Manuel Vilarinho percebeu que não estava para aquele tipo de complicações e delegou o futebol do Benfica em Vieira. Soubemos disso, mas uma coisa era dar a notícia e outra, bem diferente, era apresentar as provas. Vai daí, foi um repórter fotográfico passar uma tarde à Luz, com indicações para fotografar quem quer que entrasse e saísse da SAD. A foto de Vieira a fechar a porta, de pasta na mão e ar de executivo, fez a primeira página do dia seguinte, com uma manchete que foi algo como “O homem do futebol”. Isso para nós não era o mais importante, que a relação do jornalista é, antes de mais, com os leitores, mas Vieira passou meses a queixar-se da “armadilha”. Eu, contudo, sempre achei que ele tinha gostado, porque ali estava a prova do quão longe tinha chegado o rapaz do Bairro das Furnas. Era ele quem punha e dispunha naquela a que ainda ontem chamou “a maior instituição do país”.
Ontem, durante uma hora e meia, Vieira mencionou muita gente que foi fundamental no passado recente do Benfica, sempre com um ponto em comum: todos foram excecionais na interpretação da visão do presidente. Vítor Santos e José Guilherme meteram dinheiro para ele poder começar a safar o clube da falência. Mário Dias fez nascer o estádio, mas só porque numa noite, quando estava pronto a desistir e mandou os dossiers para o banco de trás do carro, Vieira o levou a desbloquear a situação junto da Câmara Municipal e da banca. Diogo Vaz Guedes foi crucial porque Vieira o convenceu a empenhar a Somague nas obras meses antes de haver dinheiro ou sequer a garantia de que a banca o emprestaria. Domingos Soares de Oliveira, cuja saída do Benfica nos foi apresentada por Vieira como uma espécie de início da catástrofe, tornou-se imprescindível porque em cinco minutos entendeu logo a visão do presidente, que sabia o que queria mas tinha “só a quarta classe e não sabia falar inglês”. Todos os que estiveram no Benfica e saíram eram imprescindíveis. Todos os que lá passaram e ficaram – mesmo os que, como Rui Costa, Rui Pedro Brás ou Nuno Costa, foi ele que para lá os levou – são imprestáveis. O que leva a uma conclusão que não é simpática para a visão que Vieira tem do Benfica de hoje. É uma visão amargurada, na qual quem quer que faça alguma coisa ali a fará sempre mal, ou pelo menos pior do que ele a faria. Com ele, João Neves não teria saído. Com ele, Roger Schmidt tinha sido demitido assim que faltou ao respeito aos sócios, dizendo que se era para assobiarem mais valia ficarem em casa. Com ele, o treinador do Benfica seria Rúben Amorim. Com ele, Gyökeres tinha vindo para o Benfica, porque estava identificado e ele até já tinha ido buscar outro jogador a uma segunda divisão (Darwin Nuñez). Mas o que custa a Vieira não é que Amorim e Gyökeres estejam no Sporting e Neves no Paris Saint-Germain. É que não o tenham deixado decidir. “As piores cobras são a ingratidão, a inveja e depois a traição”, disse o ex-presidente. “Tudo isso me aconteceu no Benfica”, completou.
Quer isto dizer que todo o diagnóstico feito por Vieira acerca do Benfica de hoje é descartável? Não, de maneira nenhuma. Porque há muitas coisas nas quais ele teve razão. Uma delas será a excessiva informalidade em torno do presidente. Conheço Rui Costa há mais tempo do que conheço Vieira, desde que ele era internacional júnior. Como somos relativamente da mesma idade, sempre o tratei por tu – coisa que nunca fiz com Vieira, apesar de ele me tratar a mim por tu desde o primeiro dia. A última vez que falei com Rui Costa foi há uns dois ou três anos, no intervalo de um Benfica-Belenenses em rugby. Ele afastou-se do local que ocupava na tribuna presidencial do Estádio Universitário para fumar um cigarro e eu, aí a uns 20 metros, dei-lhe um grito, na brincadeira: “Oh Rui, larga o vício!” Ele teve o poder de encaixe de não me chamar a atenção, mas eu próprio fiquei com a certeza de que tinha ido longe de mais na informalidade. Porque, mesmo que seja fruto de um conhecimento de mais de 30 anos, essa informalidade, de facto, diminui quem ocupa cargos de poder. É um problema para o Benfica que os funcionários se refiram ao presidente como “o Rui” ou que ele próprio depois se dirija ao diretor desportivo como “mano”? Não, mas é sintoma de uma leveza que se quer longe do gabinete quando se está prestes a tomar decisões de milhões, a – garante Vieira – recusar Gyökeres e impor Jurasék contra os pareceres do departamento de scouting. Porque o maior problema é mesmo esse, o crescimento da dívida, a cada vez maior dependência do mercado para assegurar a sobrevivência financeira e a flagrante leveza com que foram sendo tomadas decisões na preparação desta época, com compras e vendas de jogadores sob um critério que foi pelo menos difícil de entender por quem está fora.
O que está aqui em causa não é a luta pelo poder. Não creio que Vieira estivesse a ser cínico quando disse que não quer sequer ouvir falar em eleições antecipadas ou quando defende a legitimidade de Rui Costa para liderar o clube até ao fim do mandato. Ele próprio entenderá que nem nos seus sonhos mais otimistas voltará a ser presidente do Benfica. O tempo não volta para trás e ele não eleva o ego a ponto de achar que de repente os benfiquistas vão valorizar o que ele fez de bom e esquecer o que ele fez de mal ou o quanto do que lá está mal descende, de facto, da sua herança. A questão é que Vieira nunca foi tolinho e sabe muito bem que, mesmo que não jogue a seu favor, a sua intervenção de ontem diminui mais Rui Costa do que qualquer conversa privada que alguém possa manter num jantar ou numa reunião com o agente de um jogador na qual se diga que “o presidente não risca nada”. E, nesse sentido, com 13 meses de presidência pela frente, quem mais sai prejudicado da massagem ontem feita ao ego de Luís Filipe Vieira foi o Benfica.
Luís Filipe Vieira é um dos muitos que, em Portugal, faz o que quer mas só se desmascara quando perde o poder e pelos vistos sem a noção da realidade. Mas a culpa é de quem o convidou e só podia mesmo ser a CMTV.
Além da falta de escrúpulos que lhe conhecíamos, evidente nos vários processos que já enfrentou e enfrenta na Justiça por práticas reiteradas ao longo de décadas, e noutros que não enfrentou por incompetência ou atrasos da investigação judicial, vimos nesta entrevista o seu rancor e egomania. Ah, e uma taxa muito alta de bazófia.
A maior parte da comunicação social procura incessantemente lenha para aquecer o lume das audiências, excluindo qualquer critério de decência e cidadania nas escolhas editoriais que faz. Apesar do lastro criminal e dos prejuízos que já causou ao país, Vieira é tratado reverentemente. Este fascínio por homens fortes e aparentemente bem-sucedidos independentemente dos escrúpulos (que também se vê com Pinto da Costa) é o que mais me impressiona e preocupa, e muito diz sobre os nossos padrões enquanto sociedade.