As virtudes da simplicidade
Um City cheio de talento e taticamente complexo não saiu do zero contra o Inter. Hoje é dia de enaltecer as virtudes da simplicidade, a pensar naquilo que pode fazer o até aqui excelente Vitória SC.
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Ontem, a ver o Manchester City-Inter Milão, veio-me à memória a seleção portuguesa – e não foi por o jogo ter acabado empatado a zero, que foi o resultado dos dois últimos desafios do onze de Roberto Martínez no Europeu. Aconteceu sempre que o City tinha a bola e Rico Lewis abandonava a lateral direita e ia por ali a fora, não ficando sequer ao lado de Rodri, a meio-campo, para dar vias de saída aos três de trás, mas avançando para perto de Bernardo Silva e De Bruyne, sempre no corredor central, que a largura a atacar quem a dava eram Savinho e Grealish. A complexidade tática costuma ser parte do plano de jogo de Pep Guardiola – e pode bem sê-lo, tantas são as horas de trabalho que ele já leva à frente daquela equipa – mas não chegou para um Inter arrumado e, eis a palavra-chave para hoje, confortável. É que não há só uma maneira para matar moscas, como nos tem mostrado o Vitória SC de Rui Borges, uma equipa que é tão ortodoxa como tem sido eficaz na divulgação das enormes virtudes que nos oferece a simplicidade.
Sou sensível ao fator surpresa, que no caso do City já nem o é, porque sabemos que vai sair um elemento da linha de trás para zonas de criação, seja um dos laterais ou um central – esse foi o papel de Stones no ano do triplete, por exemplo. Fica certamente mais difícil defender uma equipa que se transfigura entre os diferentes momentos de jogo, mecanizando contra-movimentos. Mas há uma altura em que temos de parar para pensar um par de coisas. Por exemplo, se quem escolhemos para entrar em zona de criação são os jogadores mais criativos ou se, em nome desta necessidade de baralhar as cartas sempre que se recupera a bola e se entra em ataque posicional não estamos antes a tirar de lá quem pode verdadeiramente fazer a diferença. Isto é, se com a urgência de ser complexo, não estamos ao mesmo tempo a retirar à equipa o conforto de que ela precisa para melhor se exprimir – e isso é o que sinto muitas vezes a ver a seleção portuguesa. Sim, o City podia perfeitamente ter ganho, mas se ficou a zero, se Haaland praticamente não jogou, não foi porque a equipa estivesse cansada, como já nos fizeram crer, culpando o novo formato da Champions ou usando o desafio como um alerta para os seus inúmeros malefícios. Foi porque Gündogan desperdiçou duas supremas ocasiões de golo mesmo no final e também porque a equipa não pareceu cómoda na sua vontade de criar desconforto.
Lembram-se do que disse Bruno Lage depois da reestreia à frente do Benfica? “O que foi mais importante foi tentar colocar os jogadores numa posição em que eles se sintam confortáveis e eles perceberem as ligações que quero que façam”, explicou após o 4-1 ao Santa Clara. Não que o modelo de Schmidt fosse de uma complexidade extrema – que não era –, mas tinha ali muita gente a fazer aquilo que não faz melhor. Lage vai a exame outra vez hoje, em Belgrado, contra o Estrela Vermelha (17h45, Sport TV5) e veremos se resiste à tentação de complicar. E essa é a minha maior curiosidade também com o jogo mais interessante da próxima jornada da nossa Liga, o Vitória SC-FC Porto. O Vitória SC de Rui Borges, mais do que o FC Famalicão de Armando Evangelista, tem sido a melhor entre as equipas simples deste campeonato. Ali, tudo é o que parece. Não surpreende mas funciona, porque toda a gente está cómoda e a junção da atribuição correta de tarefas com as horas de treino e a confiança dos bons resultados tem feito crescer a equipa a ponto de ela se ter imposto com uma clareza desarmante no dérbi do Minho, em Braga, no domingo, colocando-se a par dos dragões no segundo lugar da tabela, a três pontos do Sporting.
O que impressiona neste Vitória SC não é só o facto de estar recheado de bons jogadores – é também a maneira como eles têm crescido em competição. Händel já era um dos médios mais criteriosos do nosso campeonato, mas está este ano a apresentar uma constância competitiva invulgar, a ponto de quase ser estranho que tenha ficado em Guimarães, face à necessidade de vender que a SAD mantém. Nélson Oliveira até já jogou pela seleção nacional (fê-lo 17 vezes, entre 2012 e 2107), mas nem nessa altura me convenceu tanto como agora, que tem somado diagonais para a profundidade à facilidade com que serve de referência na frente de ataque e a um vasto reportório de ponta-de-lança clássico que já lhe vem da escola. Mangas era golo e definição a partir da extrema-esquerda e foi-se embora, mas isso até permitiu que a equipa encontrasse equilíbrio entre as faixas, com um Kaio César mais retilíneo na direita e um João Mendes naturalmente capaz de servir de ligação, por fora ou por dentro, a partir da esquerda. Ali pode até nascer uma primeira tentativa de complexificação através das trocas posicionais que ele saberá estabelecer com Nuno Santos, o terceiro médio criativo. Atrás, Bruno Gaspar parece na plena posse das capacidades físicas e, quando assim é, já se sabe que faz todo o seu corredor, até em contraste com o futebol mais cerebral de João Miguel Mendes do outro lado – e só fico na dúvida se Rui Borges não preferiria ter um lateral mais profundo à esquerda e um mais recatado à direita, para melhor compensar os movimentos interiores de João Mendes e o futebol vertical de Kaio César. Além de ser um trunfo nas bolas paradas, Tiago Silva faz bem a simbiose entre as necessidades de marcação e de criação de um segundo médio no 4x2x3x1 e, mesmo com as lesões de Villanueva e Jorge Fernandes, continua a haver dois centrais de qualidade em Borevkovic, o líder do setor defensivo, e Tomás Ribeiro. Não é de estranhar, por isso, que Bruno Varela tenha nove balizas a zero em onze jogos competitivos esta época.
A questão é que o FC Porto de Vítor Bruno elevará o patamar de exigência de uma equipa que nem sempre foi devidamente testada. E, apesar do pouco tempo de trabalho do treinador, o FC Porto é um caso evidente de crescimento através da complexificação. Não é a mesma coisa dar profundidade pelos extremos e pedir aos dois homens da frente que se mostrem mais aos médios, baixando no campo, como os dragões já fizeram, ou introduzir na equipa um colosso físico como Samu na posição de ponta-de-lança, um jogador mais capaz de convidar os extremos a jogarem nos meios-espaços e nas entrelinhas, exigindo mais largueza aos laterais. Rui Borges não pode saber que FC Porto terá pela frente, mas há uma coisa que pode controlar, que é a sua própria equipa. Dele não dependerá um Vitória SC vitorioso ou derrotado. Dele dependerá apenas vermos um Vitória SC mais inclinado para as contra-medidas ou uma equipa igual a si mesma. Confortável. Depois se ganha ou perde, é futebol. E o futebol, nestas coisas, é terrivelmente simples.
Como se costuma dizer, às vezes o importante é não complicar e Martinez complica...e muito.
Muita curiosidade para ver o meu FCP com este VSC. Na verdade, não sei - creio que ninguém o saberá - se o VB terá unhas para tocar esta guitarra, mas agrada-me ver que ele não cessa de procurar coisas novas. Contrariamente ao que esperava para este ano, parece-me que temos uma boa equipa, com muitas alternativas. E o próximo jogo, contra o VSC, é bem mais ao nível do momento deste FCP do que foi o que jogamos contra o Sporting, que está num outro patamar de excelência.