Vlachodimos e a função de guarda-redes
Vlachodimos nunca se terá sentido apreciado no Benfica, mas esqueceu-se de como é especial a função de guarda-redes. É que mesmo tendo parecido injustificada, a troca por Helton Leite deu resultado.
Vlachodimos nunca teve vida fácil no Benfica, mas nem nada do que está a acontecer-lhe terá a ver com uma embirração particular de Jorge Jesus nem, na verdade, está a acontecer-lhe nada de extraordinário. A questão é que os guarda-redes são de facto diferentes. Dizia-se no anedotário do futebol brasileiro que “ser goleiro é tão ingrato que onde ele pisa nem nasce grama”. Esta é uma piada de antanho, que entretanto perdeu graça e pertinência, porque os tratadores de relva descobriram a forma de acabar com aqueles triângulos de terra batida na zona mais pisada pelos guarda-redes que a malta da minha idade ainda recorda, mas o que levou à criação desta frase mantém a atualidade: o guarda-redes tem um estatuto especial dentro de uma equipa. E pode usufruir dele, mas ao mesmo tempo tem de ser capaz de o aguentar. E Vlachodimos foi fazendo as duas coisas até ao momento em que deixou de ser capaz de o fazer e soçobrou.
Em causa está a mudança na hierarquia da baliza do Benfica. Jorge Jesus aproveitou um jogo da Taça de Portugal, no Estoril, há mês e meio, para segurar Helton Leite como titular. Logo se disse que não havia razão para a troca – e de facto, visto de fora, não parecia haver. O que Jesus disse depois disso, ainda por cima, não fez grande sentido como justificação, mas nem as dúvidas acerca do guarda-redes grego começaram com o atual treinador, nem os jogos daí para cá lhe tiraram razão. Após a primeira época de águia ao peito, na qual foi uma das figuras do título ganho pela equipa comandada por Bruno Lage, nem assim Vlachodimos era visto no clube como incontestável, a ponto de no defeso seguinte ter visto chegar Mattia Perín para o seu lugar. O italiano acabou por chumbar nos testes médicos – mas tem na mesma jogado com regularidade no Génova CFC desde então – mas continuou a falar-se de substitutos para o grego na Luz com alguma insistência. Vlachodimos foi respondendo bem, gabou-se-lhe a solidez mental, mas a verdade é que, consumada a substituição, o Benfica segue com cinco jornadas seguidas na Liga sem sofrer golos. Portanto, não pode verdadeiramente dizer-se que a troca tenha sido um erro.
Quando pela primeira vez justificou a troca, há cerca de um mês, Jesus disse que “o guarda-redes é um jogador como outro qualquer”. E não só não o é, como se o fosse não se colocava a questão. Agora que tem três defesas-centrais com estatuto de titular – Lucas Veríssimo, Otamendi e Vertonghen –, o treinador vai provavelmente gerir a situação de forma diferente. Ora joga com os três, mudando o sistema, ora deixa um de fora, ora deixa outro… Com os guarda-redes a coisa não funciona assim, porque se por um lado não pode colocar os dois na baliza ao mesmo tempo, por outro convencionou-se que não se rodam guarda-redes como se rodam os jogadores de campo. O guarda-redes suplente joga nas Taças e é se o opositor não for particularmente complicado. O titular só é substituído num jogo por lesão, nunca por opção, como se faz com os jogadores de campo. A Liga Portuguesa só tem seis jogadores que fizeram todos os minutos possíveis até agora e são todos guarda-redes: Marco (Santa Clara), Kieszek (Rio Ave), Jordi (FC Paços de Ferreira), Léo Jardim (Boavista), Pasinato (Moreirense) e Adán (Sporting). Mesmo que já lhe cresça relva debaixo dos pés, o guarda-redes é, de facto, diferente. E tem de saber gerir essa diferença, quer seja o titular que joga sempre, quer seja o suplente que fica sempre a ver.
Ora Vlachodimos foi sabendo gerir essa condição enquanto esteve à frente na hierarquia. As suas qualidades e defeitos são bem conhecidos: é forte entre os postes, muito forte no um contra um, vacila nas bolas aéreas vindas de cruzamentos e no jogo com os pés. Há quem diga que a gota de água que motivou a troca foi a forma como o grego desfez, para a frente da baliza, o cruzamento de Porro que acabou por motivar o golo de Matheus Nunes no dérbi com o Sporting. Parece pouco. Um erro face a tantas intervenções decisivas e é logo motivo de troca? Ainda por cima depois de mais dois jogos (Vitória SC e FC Famalicão) nos quais o grego manteve a baliza a zeros? A questão é que, a ver os dois trabalhar, Jesus já quereria mudar antes e só não o terá feito precisamente devido ao estatuto especial dos guarda-redes. Mudou ali e caberia a Vlachodimos entender que tinha passado a segunda opção e trabalhar para recuperar a titularidade. O que o grego fez assim que pôde – quando defendeu as redes da Grécia nos jogos de qualificação para o Mundial – não foi nenhum crime, mas também não o ajuda. Sou e serei sempre contra a lei da rolha que os nossos clubes impõem aos jogadores, impedindo-os de falar livremente, mas também acho e acharei sempre que, por uma questão de respeito, o espaço público não deve servir para contestar escolhas e para se pôr em causa a qualidade de colegas de balneário.
Vlachodimos nunca se terá sentido devidamente apreciado dentro do Benfica e nisso acho que tem alguma razão, porque foi sempre importante nos resultados que a equipa obteve nos últimos três anos. É por isso que quer sair. Ao falar como falou terá dificultado as coisas e tornado mais desagradável o período que lhe resta no clube. Mais do que revoltado, aqui foi pouco inteligente.