Vieira, o orçamento e aquilo que conta
O chumbo do orçamento do Benfica foi um aviso a Vieira. É relativizável, mas deve ser levado a sério e enquadrado naquilo que conta estrategicamente: o futebol e a sua condução estratégica.
O que esteve em causa no chumbo do orçamento apresentado pela direção do Benfica aos sócios não foi o orçamento. O facto foi inédito – nunca um orçamento tinha sido chumbado pelos sócios do Benfica, desde que é obrigatório a direção submeter o documento a votação – e dele devem ser retiradas ilações, mas não necessariamente relacionadas com o volume do investimento no hóquei em patins ou no rugby. O que esteve em causa ali foi um mal-estar que começa a alastrar entre os sócios ativos – ou ativáveis – com os caminhos que têm sido seguidos por Luís Filipe Vieira, sobretudo no comando do futebol. O chumbo do orçamento foi um cartão amarelo para o presidente ver, aceitar e trabalhar, que é como quem diz, para refletir.
É preciso enquadrar as coisas para se perceber que nem isto quer dizer que Vieira vá perder as eleições de Outubro nem que os sócios do Benfica estão profundamente descontentes com o caminho em que ele tem sido líder. O orçamento foi votado por 1505 sócios, ao passo que as eleições de 2016, nas quais havia – tal como agora no orçamento – lista única, que se podia aceitar ou rejeitar, tiveram 12.503 votantes. Nessas eleições, que aconteceram meses depois do primeiro título ganho pelo Benfica de Rui Vitória ao sprint com o Sporting de Jorge Jesus e com o Benfica à frente do campeonato e a caminho do tetra, Vieira teve 95,5% dos votos, havendo 4,4% de brancos e 61 votos nulos. Claro que chumbar um orçamento não pode ser comparado em termos de militância com a anulação de um voto, porque o primeiro ato tem consequências palpáveis e o segundo não, mas o sentimento que as duas ações expressam é o mesmo: “não estamos a gostar do caminho que isto está a levar”.
Se Vieira quiser ser autista face a esta realidade, até pode puxar os números para o seu lado. Porque se em 2016 houve 754 votantes a optarem pelo branco ou pelo nulo nas eleições de lista única, agora o total de sócios que lhe rejeitou o orçamento foi de 812. O que transformou uma vitória retumbante numa derrota preocupante foi a dimensão da votação global. Até pode o presidente argumentar que quando o que estiver em causa for a sua permanência no cargo os sócios vão responder outra vez de forma massiva e que os que não foram votar na sexta-feira vão engrossar sobretudo as fileiras da continuidade. Mas seria perigoso não olhar para a votação deste orçamento como se de um sinal de tratasse e reagir como o fez, por exemplo, João Varandas Fernandes, ao Record de hoje, considerando que este chumbo “não é um aviso à direção”. Porque é evidente que o chumbo é um aviso à direção e, muito mais concretamente, à SAD do futebol. E sim, eu sei que o futebol nem estava em causa neste orçamento.
O chumbo do orçamento é um aviso de que os benfiquistas querem clareza estratégica. É claro que uma série de bons resultados pode mudar tudo – como teriam sido as eleições de 2016 se, em vez de chutar uma bola para o topo da bancada, Bryan Ruiz tivesse feito golo no dérbi e o Sporting de Jesus tivesse ganho aquele sprint pelo título ao Benfica de Vitória? – mas os maus resultados dos últimos tempos e a forte possibilidade de a equipa perder o segundo campeonato em três anos para um FC Porto em dificuldades e intervencionado pela UEFA vieram forçar os sócios a olhar para a condução estratégica. E não estão a gostar de coisas que até vinham tolerando e até aplaudindo quando a equipa ganhava. Como a política desportiva centrada no mercado ou a falta de clareza da administração acerca de um fator de divisão tão profunda no clube como é Jorge Jesus.
No fundo, ainda que não esteja minimamente relacionado na prática, o que esteve em causa no chumbo do orçamento foi a guinada estratégica que Vieira deu no volante no dia em que decidiu que não ia renovar com Jesus e a posterior aproximação causada pelo facto de ambos fazerem do bar e do restaurante do Ritz o seu centro de operações. Vieira não quis renovar com Jesus, porque percebeu que o fator fundamental na valorização dos jogadores que vendia era a intervenção de Jorge Mendes – e que, desde que tivesse um treinador que os pusesse a jogar com regularidade e firmeza, podia vender pelo mesmo preço os miúdos da formação cujo valor contabilístico era zero ou estrelas sul-americanas contratadas por umas dezenas de milhões. Já se vê a diferença que isso faz num relatório e contas em termos de mais-valias, certo?
Ora, enquanto a equipa foi ganhando – sobretudo enquanto ganhou ao Sporting de Jesus – a maior parte dos sócios entretinha-se a celebrar bicampeonatos, porque ganhavam no campo e mais tarde ganhavam também no mercado. O problema foi quando Jesus deixou de estar do outro lado para perder e dar razão à tal guinada estratégica do presidente. E, sobretudo, quando além disso se reaproximou de Vieira – culpa do Ritz… – e no campo apareceu o FC Porto de Sérgio Conceição como força viva capaz de ganhar campeonatos. A estratégia deixou de ser a menina dos olhos dos benfiquistas, que começaram a descobrir que, afinal, os miúdos da formação do Seixal também cometiam erros, como os outros. “O Ferro é isto, o Tomás e o Nuno Tavares são aquilo, só se safa o Rúben Dias e mesmo esse dá muita porrada”, dizem. De repente, os negócios deixaram de os satisfazer. E, no meio este silêncio ensurdecedor, passou a emergir a figura do treinador, permanentemente à sombra dos feitos que Vieira e Jesus alcançaram em conjunto, quando tiraram o Benfica daquele limbo em que estava e no qual havia ganho apenas um campeonato em 16 anos – e mesmo esse, o de Trappatoni, caiu-lhe do céu aos trambolhões.
Para não ser surpreendido em Outubro, Vieira tem de ser claro e rápido. Tem de ser claro acerca da estratégia e rápido a definir o que quer de um treinador e se quer ou não fazer regressar Jesus. Porque esta questão chega para desgastar qualquer um, de Rui Vitória a Bruno Lage ou até a Pochettino.