Vieira, o Benfica e a sociedade
Mesmo que não venha a ser dado como culpado, Vieira terá provavelmente de enfrentar uma investigação morosa que o afastará do Benfica. Que conclusões devem disso tirar o clube, a SAD e a sociedade?
É inevitável que o Benfica apanhe por tabela no furacão que levou ontem à detenção de Luís Filipe Vieira, seja na qualidade de sociedade lesada por negócios fraudulentos, caso venham a ser provados, seja até na condição de entidade privada do seu líder, na eventualidade de as perguntas que o juiz Carlos Alexandre pretende fazer ao presidente encarnado acabarem por não redundar em nenhuma condenação mas o arrastem na mesma para uma investigação que o levará ao dever de afastamento. Que Vieira devia dar justificações a toda a gente, seja a um juiz, aos benfiquistas que o apoiaram e nele votaram ou ainda aos contribuintes, já o tinha escrito aqui, aqui ou aqui, a propósito de casos tão díspares como a OPA mal explicada à SAD em aparente benefício de alguns acionistas particulares ou o envolvimento constante do nome do Benfica nas respostas que o presidente encarnado deu à Comissão Parlamentar de Inquérito às perdas do Novo Banco. A questão é que se este caso ganha as proporções que o aparato de ontem fazem prever, nem a coisa se ficará por simples explicações nem Vieira estará sozinho na necessidade de as dar e o Benfica precisará de convocar eleições o mais depressa possível.
Vamos ser práticos. Às suspeitas que já havia em torno de casos como a OPA à SAD e a uma indesejável promiscuidade entre o Benfica a as empresas de Vieira, que as respostas dadas aos deputados a propósito do Novo Banco só adensaram, juntaram-se ontem outras, relativas a desvio em proveito próprio e de alguns parceiros negociais de comissões relativas a transferências de jogadores, o que levou também à detenção do empresário bracarense Bruno Macedo. Ora, mesmo que isto venha a resultar num enorme saco de coisa nenhuma, mesmo que a acusação acabe por não vingar, perante estas suspeitas, caucionadas por um juiz, parece inevitável que Vieira venha a ser impedido de continuar em funções no Benfica. Isto não equivale a dizer que seja culpado – sim, acredito sempre na presunção da inocência –, mas tão só a admitir que se alguém vê a sua atuação à frente de uma sociedade investigada pela justiça a ponto de se justificar a sua detenção, não é razoável permitir-lhe que continue a dirigir essa mesma sociedade, face ao risco evidente de poder contribuir para a destruição de provas ou para a sua “normalização”.
Não cheguei ao ponto de alucinação que me levaria – e levará alguns indefetíveis “vieiristas” – a achar que tudo não passa de uma cabala judiciária para prejudicar o Benfica, na pessoa do seu presidente. Também não me parece que a Polícia Judiciária ande por aí a deter pessoas sem suspeitas razoáveis – ainda que a dimensão espetacular da coisa tenha voltado a ser excessiva, como já tinha sido, por exemplo, nos casos de José Sócrates ou de Bruno de Carvalho. Mas parece-me inevitável que da detenção de ontem resulte não só o afastamento de Vieira das suas funções no Benfica como a proibição de contactar com quem por lá ficar, seja no clube ou na SAD. Confrontado com a primeira detenção de um presidente em exercício de que há memória nos três grandes – Pinto da Costa escapou de boa no auge do Apito Dourado –, o Benfica já manifestou que colaborará com as autoridades e que não só pretende “apurar a verdade até às últimas consequências” como vai “defender sem qualquer reserva os interesses do clube”. Assim sendo, a confirmarem-se estas medidas de coação mais gravosas, aquilo que faz sentido é que seja nomeado um presidente interino e que de forma célere sejam convocadas eleições.
Uma solução de continuidade, que seria até admissível em caso de um afastamento menos suspeito do presidente, não o é nas circunstâncias atuais, porque qualquer que ela seja estará ferida pela passividade com que vinha encarando a realidade. O que me espanta é que, apesar das sucessivas demissões de presidentes da mesa da Assembleia Geral, ninguém na direção ou na administração da SAD tenha sentido o incómodo suficiente com questões como a OPA ou as declarações de Vieira na Comissão de Inquérito para sequer conduzir o presidente em direção à aceitação da Assembleia Geral insistentemente pedida pela oposição. Mesmo que não sejam cúmplices nos atos – e como ontem clube e SAD reforçaram, nem um nem a outra foram constituídos arguidos nem são suspeitos – os dirigentes e administradores do Benfica e da Benfica SAD têm-no sido pelo silêncio, pela forma como nem sequer questionaram o que estava a acontecer. E nisso não estão sozinhos. Com eles estão os dois terços de sócios que votaram em Vieira nas últimas eleições e os apoiantes ilustres que chegaram a fazer parte da sua Comissão de Honra, como o primeiro-ministro, António Costa, ou o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina. Não sabiam? Claro que não sabiam, como ninguém sabia nem sabe ainda. Mas, mais do que legítimo, era desejável que se questionassem, pelo menos interiormente.
A detenção de Vieira será apresentada por muitos políticos anti-futebol – e estou a pensar em Rui Rio, por exemplo – como uma bandeira, uma vitória da justiça face aos senhores feudais da bola, uma prova de evolução do país, que já não venera sem questionar quem manda nos destinos dos clubes. Isso, no entanto, a mim, serve-me de zero. Primeiro, porque não é verdade, como acabei de provar. Depois porque vir dizê-lo não passa de demagogia. O futebol, aqui, não é diferente dos outros domínios da alta finança. E se há coisa que a teia deste caso e o seu cruzamento com outros, como o do Novo Banco, vem fazer é deixar-me ainda mais preocupado.