Vieira, das empresas ao Benfica
O empresário foi à Comissão Parlamentar e trouxe a debate o nome do Benfica. Mas foi o Benfica que escolheu repetidamente viver com ele, com o seu método de gestão e com as suas relações com a banca.
A presença de Luís Filipe Vieira na Comissão Eventual de Inquérito Parlamentar às perdas registadas pelo Novo Banco e imputadas ao Fundo de Resolução não seria nunca tema para este espaço, não tivesse o presidente do Benfica chamado o clube ao palco por mais de uma vez e não tivesse um ilustre senhor deputado achado que aquele era o momento de fazer uma piada e perguntado “como é que se investe 100 milhões de euros para ficar em terceiro lugar na Liga?”. Tenho para mim muito claro que a atuação dos dirigentes desportivos na sua vida privada é isso mesmo, privada, e embora me assuste e revolte como cidadão o conjunto de manigâncias e falcatruas feitas em torno de um banco que foi afundado por uns quantos e que estamos todos a pagar, não tenho competência nem capacidades para avaliar questões de alta finança como aquelas. E, no entanto, Luís Filipe Vieira pronunciou ontem várias vezes a palavra que me fez trazer o tema aqui: “Benfica”.
Ultrapassa-me a razão pela qual Vieira achou que tinha de levar o Benfica ao palco. Como tudo o que ali se diz é preparado à minúcia por escritórios de advogados que os milhões tirados do Banco Espírito Santo e do Novo Banco que lhe sucedeu podem pagar, não creio que isso tenha sido um lapso. Se o fez para gerar alguma empatia do outro lado – como claramente sucedeu na pergunta/graçola sobre investimento versus resultados desportivos – e depois poder lançar a tese segundo a qual não é devedor mas sim quase um dos muitos lesados do banco isso já me parece bastante perigoso para o clube, porque o arrasta para um pântano ao qual ele não ganha nada em estar associado. Da mesma forma que me parece perigosa a conjunção da compra de uma dívida de Vieira a um fundo de investimento norte-americano pelo maior acionista individual da SAD benfiquista – José António dos Santos, o “Rei dos Frangos” – com aquela estranha OPA que o Benfica tentou lançar (sem sucesso) à sua própria SAD, oferecendo-se para pagar muito mais do que o valor de mercado das ações, dessa forma beneficiando bastante quem tivesse títulos para vender. Como José António dos Santos.
Não creio que a legitimidade de Vieira para presidir ao Benfica tenha sido afetada pelo que se passou ontem, até porque ainda recentemente o líder do clube e da SAD foi eleito por larga maioria por mais um mandato e, nestas coisas, não há inocentes. Toda a gente sabia no que estava a votar. Aliás, basta recordar aquilo que foi dito ontem pelo presidente encarnado – e que já era do conhecimento de todos – acerca da sua relação com a banca. “A minha ida para o Benfica não foi apenas uma vontade e um orgulho da minha parte. Foi também um pedido de várias instituições financeiras”, disse Vieira, misturando mais uma vez a teia montada pela gestão dessas tais instituições financeiras, entre as quais estavam o Banco Espírito Santo e Ricardo Salgado, com a realidade do clube. Vieira alega que foi para credibilizar o clube, mas também é legítimo que se pense que foi para alinhar estratégias entre o clube e a banca. Aqui, contudo, do que se trata, não é de estabelecer quem é honesto e quem não é, quem é culpado e quem é inocente. Até prova em contrário em tribunal, aliás, todos são inocentes. Mas o que a audiência parlamentar de ontem conseguiu foi escarrapachar na cara de toda a gente que o Benfica – e possivelmente outros clubes, mas não é deles que se trata neste momento… – viaja no mesmo carrossel que os fundos ocultos, as “off shores”, as fundações ou as holdings que levaram à implosão do BES.
Já o sabíamos? Já, pois claro. Mas nunca tal tinha sido assumido desta forma, sem que alguém tivesse sequer perguntado, até ao momento em que Luís Filipe Vieira se sentou perante a Comissão Parlamentar e pronunciou a palavra “Benfica”. E se o fez para arregimentar os seus maiores defensores, os que confundem o cidadão com o clube, levou a narrativa mais longe: ao dizer que só estava ali porque era presidente do Benfica ou que outros clubes deviam também lá comparecer, Vieira abriu a porta a quem hoje já veio falar do perdão da dívida aos rivais. Mas o que estava em causa naquela inquirição não eram os negócios do BES ou do Novo Banco com o Sporting ou o FC Porto. O que estava em causa não eram sequer os negócios do BES ou do Novo Banco com o Benfica. Esses, não tenho a competência técnica para os analisar. O que estava em causa ali eram os negócios do BES e do Novo Banco com o cidadão Luís Filipe Vieira e foi ele que trouxe o Benfica ao palco.
A escolha que os sócios dos clubes podem sempre fazer é se querem ou não fazer parte deste carrossel. Se acham ou não que isso é absolutamente imprescindível para ganhar no mega-competitivo futebol-indústria que temos hoje e de que o Benfica, com as suas operações de mercado de transferências regularmente feitas acima do valor de mercado, indiscutivelmente faz parte. Os sócios do Benfica manifestaram-se em Outubro – e cerca de dois terços dos votos dizem que sim e que sim. Que sim, querem fazer parte. E naturalmente que sim, que acham que para ganhar é preciso fazer parte. Por isso mesmo reelegeram Vieira. Mas se, face à estupefação por afinal não terem ganho, depois de um investimento de 100 milhões de euros em jogadores, quiserem pedir justificações ao presidente, não é de todo na Comissão Parlamentar que devem fazê-lo. Para fazer esse tipo de perguntas – ou para perceber melhor se há ligações entre a compra da dívida de Vieira aos americanos e a OPA do clube à SAD – o Benfica há-de ter órgãos próprios. E é lá que esse tipo de questões deve ser colocada. Nem que depois se perceba que a culpa foi da Covid19.