Varandas e o dedo na ferida
Frederico Varandas assumiu a responsabilidade pelo quarto lugar do Sporting, mas depois perde-se em explicações inúteis para o futuro do clube. Incapacidade ou falta de vontade de fazer auto-crítica?
Frederico Varandas concedeu uma entrevista de balanço da temporada ao Record de hoje e, logo na primeira página do jornal, leio que o “presidente assume total responsabilidade pela época dos leões”. Esse é, mesmo, o título principal: “Assumo total responsabilidade”, diz Varandas a encabeçar a página 2. Fiquei curioso e li tudo, para perceber se o presidente leonino concordava comigo acerca dos erros que foram cometidos pela administração. Afinal, não. No fundo, Varandas está como os cidadãos que se queixam da toxicidade do futebol e dos programas a ele dedicados na TV, mas interpretam a decisão da SIC e aparentemente da TVI acabarem com eles como uma forma de cumprir de forma mais dissimulada a agenda de um só clube (nunca o deles, claro): assume que a época foi má, assume responsabilidade formal, mas na verdade a culpa foi das dívidas, de Alcochete, dos árbitros, dos miúdos não estarem ainda prontos no início da época e até do facto de no Sporting estarem “pessoas de bem”. Como explicação, é curto. Como base de lançamento do futuro da equipa, chega a ser preocupante.
Sei que o Sporting é um campo minado para o qual nem a guerra civil do Afeganistão prepara um homem. Costumo mesmo dizer que o futebol português está de tal modo que sempre que se vê um debate ele acaba com portistas a insultar benfiquistas, benfiquistas a insultar portistas e sportinguistas a insultarem-se uns aos outros. No caos que resultou dos processos de afirmação (primeiro) e implosão (depois) do “brunismo”, em que muitos sportinguistas quase regozijam com a temporada com mais derrotas da história do clube só para poderem dizer “votaram nisto? Agora aguentem!”, não deve ser fácil vir reconhecer culpas próprias em público, porque isso equivale a dar munição aos saudosistas de um passado que não regressa, que nem por isso hesitariam por um segundo em apontá-las diretamente à cabeça de quem manda. Mas, no meio disto tudo, o Sporting 2020/21 só terá uma salvação: é que nos “exercícios diários de autocrítica” que vai fazendo, o presidente seja um pouco mais exigente consigo próprio do que foi nas páginas do Record.
Sim, o ataque a Alcochete – e, mais do que isso, o conflito aberto entre o ex-presidente e os jogadores da equipa de futebol, que datava de muito antes da invasão – foi a primeira machadada a derrubar um plantel que tinha, há dois anos, uma qualidade bastante superior à atual. Mas tudo o que se fez a seguir não ajudou em nada. De acordo com o portal transfermarkt, o plantel do Sporting valia em 2017/18 259 milhões de euros. O de 2018/19 já valia apenas 211 milhões. O atual está cotado em 94 milhões. Mesmo descontando aqui a desvalorização provocada pela pandemia (que se acredita andará ligeiramente acima dos 10 por cento), é um trambolhão difícil de explicar com racionalidade. A necessidade de vender e de reagir às rescisões que se seguiram a Alcochete funciona como atenuante, mas não explica tudo: para justificar esta descapitalização futebolística é preciso ir buscar decisões erradas, vendas feitas abaixo do preço de mercado, compras ou empréstimos concretizados acima desse barómetro, bem como as escolhas erráticas e nada firmes de treinador, que em nada terão ajudado a cozinhar o bolo geral.
Entendo que, para não armar os “inimigos”, Varandas não venha para os jornais dizer que (só para falar nesta época) foi um erro crasso ter vendido Bas Dost por sete milhões de euros sem assegurar um substituto, que a contratação de Rosier por cinco milhões é uma tragédia, que libertar Nani (que podia ser um polo aglutinador da juventude da qual ele quer fazer o futuro) foi uma asneira, que Gudelj terminou o empréstimo sem que tenha chegado ninguém de nível sequer próximo para o substituir, que três treinadores depois ainda não há uma ideia capaz de tornar Vietto (em quem o Sporting investiu 7,5 milhões do recebido por Gelson) útil ao conjunto ou que os empréstimos de Jesé (dois milhões de custo), Bolasie e Fernando foram uma catástrofe. E por aqui se explica muito do que foi uma época a cujo epílogo o Sporting chegou com uma equipa de sub23, com alguns juniores em campo, naturalmente curtos para as exigências da alta competição e cuja necessidade de afirmação coletiva precoce poderá ser-lhes bastante prejudicial. Pelo menos sem serem enquadrados por um onze experiente e no qual abundem jogadores de qualidade.
Sim, é verdade que nos dois anos de Varandas e da comissão de gestão o Sporting gastou menos que nos últimos dois de Bruno de Carvalho: foram 60 milhões de euros (28 milhões em 2019/20 e 32 milhões em 2018/19), para comparar com os 81 milhões dos dois últimos anos da presidência anterior (47 milhões em 2017/18, mais 34 milhões em 2016/17). Além disso, faturou mais no mercado: 134 milhões recebidos em transferências nos dois últimos exercícios de Bruno de Carvalho (81 em 2016/17 e 53 em 2017/18) a comparar com 182 milhões nos dois anos entre a comissão de gestão e a administração de Varandas (79 em 2018/19 e 103 em 2019/20). Mais: ao contrário do que agora se pretende fazer crer, como é próprio de qualquer mito sebastiânico, o brunismo também trouxe flops (só nesse período de dois anos chegaram a Alvalade Alan Ruiz, Spalvis, Castaignos, André, Douglas, Campbell, Markovic, Misic, Matheus Oliveira, Rúben Ribeiro…). A questão é que o momento difícil que o Sporting atravessa não se compadece com mais erros crassos e o próximo defeso será mais fundamental que qualquer dos anteriores. Para o encarar, Varandas terá de alargar muito os horizontes. E colocar o dedo na ferida como não fez na entrevista ao Record.