"Vão vir charters" de insolventes
No dia em que chegou a Portugal o jogador mais rico do Mundo e que Proença disse que a Liga pode ser das melhores, a SAD do CD Aves desistiu. Coisas como estas não se adivinham. mas previnem-se.
No mesmo dia em que o Marítimo anunciou a contratação de Faiq Bolkiah, sobrinho do sultão do Brunei e o futebolista mais rico do Mundo, com uma fortuna de 18 mil milhões de euros, e em que Pedro Proença foi à Soccerex dizer que Portugal pode ter “uma das melhores Ligas do Mundo”, a SAD do CD Aves anunciou que desistia do Campeonato de Portugal e admite mesmo que a insolvência está ao virar da esquina, deixando apeados vários profissionais cujos salários andam muito mais perto dos 600 euros mensais do que dos sonhos de grandeza que o início deste texto parecia fazer adivinhar. “Estava mesmo a ver-se” e “Seria tão fácil evitar coisas como esta” são coisas que se ouvem e leem muito a propósito da tragédia das Aves, mas a questão é que nem estava nem era.
Há duas maneiras de travar esta luta. Uma, a mais popular, a mim não me chega. O “estava mesmo a ver-se” baseado na análise de caráter das pessoas envolvidas é altamente falível, quanto mais não seja porque abre a porta ao preconceito, muitas vezes de base puramente xenófoba. Luís Duque andava encantado com o capital chinês e pode até só ter conseguido chegar a um chinês de terceiríssima divisão, como veio a verificar-se ser o caso de Wei Zhao, mas até vinha de quatro anos como presidente da Liga, a mesma Liga que Proença diz que pode ser uma das mais fortes do Mundo. Luiz Andrade aparece hoje enredado numa teia de negócios suspeitos e os que conheciam o seu passado de ligação a José Veiga vão dizer que já estavam à espera, pois então, mas Veiga foi aliado estratégico de todos os campeões nacionais dos tempos modernos: esteve ao lado do FC Porto e de Pinto da Costa nos tempos do “penta”, “jogou” pelo Boavista do clã Loureiro em 2001 – onde pôde aprofundar a ligação a Paulo Gonçalves –, foi ogiva nuclear do Sporting do início do século (com Duque, pois então) e a sua viragem para os lados do Benfica de Vieira é hoje apontada como uma das principais origens do “hara-kiri” leonino após o título do SuperJardel.
Portanto, virmos hoje dizer que verificando quem estava a envolvido na compra da SAD do CD Aves se percebia que as coisas só podiam acabar assim é mais ou menos o mesmo que eu, sem ter nunca visto jogar Bolkiah, afirmar que a sua contratação pelo Marítimo pode ser útil em muitos aspetos mas não o será seguramente dentro de campo. Aliás, é pior, porque se os envolvidos no problema das Aves ainda tinham currículo para apresentar, o milionário do Brunei nunca fez um jogo nos seniores de nenhum dos clubes que representou em Inglaterra – e ele esteve no Southampton FC até aos sub15, nos sub16 do Arsenal, nos sub19 do Chelsea e nos sub23 do Leicester City. Portanto não, não estava mesmo a ver-se. Ou melhor, até podia estar a ver-se, mas não era seguramente por causa dos nomes ou da origem dos envolvidos. Adivinhava-se porque a legislação não protege os clubes portugueses do saque a que estão sujeitos por parte do pequeno capital internacional e porque a própria Liga não vai tão longe como devia nas medidas de fiscalização – e nesse aspeto, sem querer antecipar-me ao que vai dizer o Tribunal Arbitral do Desporto a propósito do recurso do Vitória FC ou avaliar se há incumpridores indevidamente mais protegidos que outros, o facto de por fim terem surgido medidas punitivas é algo que aplauso.
Os tempos não são fáceis e tanto a Liga como os legisladores e o governo terão mais em que pensar neste momento em que a prioridade deve ser assegurar que o edifício do futebol não acabe por ruir em consequência das limitações que lhe são impostas pela pandemia. Mas este até é um problema que já devia ter sido atacado há muito tempo, muito antes de um morcego se ter cruzado com um pangolim em Wuhan. A pequena dimensão do mercado português permite que as nossas SAD sejam compradas a preço de saldo – Zhao comprou 70 por cento da SAD do CD Aves por 750 mil euros, o que é muito menos do que pode ganhar um agente na comissão pela transferência de um só jogador do clube num ano em que as coisas corram bem desportivamente. Os sonhos de grandeza da Liga, bem expressos nas palavras de Pedro Proença na Soccerex, levam a que esse nível de investimento seja ridículo face à expectativa de retorno. É a associação destes dois fatores que leva a que seja urgente proteger as SAD da rapina com legislação, por exemplo impedindo que os clubes percam a posição dominante – como na Alemanha – mesmo que isso mate à nascença uma série de sonhos húmidos de quem acha que só pela venda pode atingir a grandeza. E a que seja depois crucial exigir a apresentação de garantias regulares a quem seja detentor de posições relevantes em SADs participantes numa Liga que quer ser uma das melhores do Mundo. Porque, infelizmente, enquanto isso não acontecer, a tragédia das Aves não vai ser ato único nem isolado. “Vão vir charters” de insolventes a travar o crescimento da Liga portuguesa.