Uma sessão de terapia grátis
O caldo entornou-se entre Conceição e Jesus no final do FC Porto-Benfica. O incidente foi provocado por excessos de testosterona e de egomania de dois homens que são muito melhores do que parecem.
Muito se falou do aceso bate-boca entre Sérgio Conceição e Jorge Jesus, no final do FC Porto-Benfica, e se por um lado tanto um como o outro terão já, a esta hora, arrefecido os ânimos, é certo e seguro que estarão ainda convictos da razão que lhes assiste, alimentada a grandes doses de testosterona e egomania. Conceição e Jesus são dois protótipos do treinador-alfa, farinha do mesmo saco, mas são sobretudo dois tipos inteligentes, dois homens que sabem que mais confrontos se seguirão ao de sexta-feira, no qual, é preciso dizer, nem um nem o outro inventou a pólvora. Por isso nem precisarão de uma sessão de terapia para entender o que realmente se passou ali.
No Dragão, Jesus conseguiu inverter uma lógica recente de supremacia portista no clássico, equilibrou as coisas, mas apesar de ter dito que “não se viram Coronas nem Maregas”, não ganhou o jogo. A inversão de lógica fê-la recorrendo a um misto daquilo que eu já aqui tinha previsto – ao reconhecer que não podia controlar o jogo com bola, aumentou a contundência nos duelos – com uma surpresa nos posicionamentos estratégicos, que foi a colocação de Nuno Tavares entre Vertonghen e Grimaldo, fechando o espaço às esperadas trocas posicionais entre Marega e Corona. A primeira “inovação” transportou o Benfica para um comportamento defensivo incomum nos últimos 10 ou 15 anos no futebol português, com referências individuais para a marcação que mais pareciam as do Farense de Paco Fortes na década de 90; a segunda acaba por ser uma réplica do que as equipas quase todas fazem quando vão jogar com o FC Porto – ou com qualquer dos outros grandes – no seu terreno, simplesmente com um brinde que é muito relevante: Jesus fê-lo com melhores jogadores e, por isso mesmo, conseguiu transportar essas doses massivas de antagonismo para todo o campo.
Porque, no fundo, por mais vezes que Jesus e Conceição batam no peito, a questão acaba por chegar a eles, aos jogadores – em Portugal chega mais aos árbitros, mas disso, já sabem, vou falar apenas no Futebol de Verdade de mais daqui a pouco. O resto são conversas que têm de ser contextualizadas, palavras que têm de ser vistas e entendidas como expressão de quem as coloca cá fora. Jesus ficou aborrecido por Conceição ter revelado publicamente o conteúdo do telefonema – privado, coisa entre amigos – entre ambos, em vésperas de Natal, no qual o treinador portista lhe terá dito que esperava um adversário “mais vivo”? Se ficou, teve razões para isso, não tem sequer que estar a perceber que o rival o fez porque sente a necessidade de normalizar as suas relações com a comunicação social, de mostrar que também é um tipo divertido e humano e não apenas um “capataz” que responde torto à generalidade das perguntas. Conceição ficou aborrecido por Jesus ter puxado dos galões na “flash interview” do Dragão, apregoando – e no fundo reclamando para si mesmo os méritos – uma supremacia que na verdade não foi assim tão evidente nem foi fruto de génio tático? Se ficou, a ponto de dizer que o empate “pode encher o ego a uma ou outra pessoa da equipa adversária”, mas que a ele não o satisfazia, também teve razões para isso, não tendo sequer de estar a perceber que o rival o fez porque sente a necessidade de se colocar sempre no centro das atenções, de manter uma aura que por vezes lhe foge porque, no limite, os jogadores é que decidem e ele nem chegou lá acima como jogador.
O clássico de sexta-feira foi um jogo muito interessante – e dele também vou falar no Futebol de Verdade – e não tem de ser resumido a um bate-boca entre dois tipos de quem, tenho de o dizer, gosto genuinamente, porque os conheço há mais de 20 anos e porque aprendi a ver o que têm de bom muito antes de serem treinadores de topo. Sérgio Conceição deixou sair cá para fora a revolta que o faz achar sempre que o Mundo se uniu para o tramar. Jorge Jesus deixou escapar a soberba que o leva a crer que o Mundo todo está dependente do que ele vai inventar a seguir. Eles já eram assim quando se conheceram, em Felgueiras, há quase três décadas. Não é agora que vão mudar, mas também estou convencido de que não é agora que vão deixar de se respeitar e de olhar um para o outro como amigos.