Uma questão de ADN
O ADN não se reclama após os jogos nem tem a ver sobretudo com combatividade ou resiliência. Começa por se ver taticamente. E aí o SC Braga tem uma identidade bastante mais forte.
Tem sido recorrente: sempre que as coisas correm mal ao FC Porto, aparece alguém a falar de ADN, seja para reconhecer que a equipa esteve desconcentrada e que isso não faz parte da sua identidade ou para afirmar que ela vai reagir, porque é essa a sua natureza. Ontem até houve direito a bis, pois no rescaldo da eliminação da Taça de Portugal pelo SC Braga, tanto Pepe como Sérgio Conceição abordaram a famigerada questão da identidade. Mas essa é uma temática que pode ser vista pela positiva: o sucesso bracarense no Dragão foi, em primeiro lugar, o sucesso da manutenção de uma identidade que o FC Porto, por sua vez, nem sempre respeitou. Dá que pensar que as duas equipas que menos mudam em Portugal – o SC Braga e o Sporting – estejam nos dois primeiros lugares da classificação da Liga, enquanto que os mais poderosos FC Porto e Benfica, espécie de camaleões táticos, que várias vezes já optaram por se adaptar ao adversário, vêm acumulando frustrações.
Carlos Carvalhal entrou no Dragão a jogar como joga sempre – e assim se manteve até ao momento em que ficou com dez homens, por expulsão de Borja, ainda na primeira parte. Por essa altura já construíra uma vantagem (3-1) que tornava quase impossível qualquer ideia de recuperação portista – eram precisos mais três golos em cerca de uma hora de futebol. E, mesmo tendo sido forçado daí para a frente a abdicar de boa parte das suas ideias – que não só exigem onze jogadores em campo como partem precisamente da função do que acabou por ser expulso –, o treinador bracarense não evitou um arremedo de orgulho misturado com indignação quando devolveu aos jornalistas a pergunta acerca da identidade futebolística da sua equipa. “Os analistas que expliquem”, disse. Só que não há uma fórmula básica para identificar o jogo da equipa de Carlos Carvalhal. É 3x4x3? Sim. É 4x4x2? Também. É 5x4x1? Claramente. O ADN da equipa do SC Braga é feito da capacidade de mudar, no mesmo desafio, não de acordo com aquilo que o jogo está a pedir-lhe, mas de acordo com aquilo que ela quer impor ao jogo, conforme tem bola ou não, por exemplo.
Este SC Braga é afirmativo e não reativo. Ontem sentiu dificuldades quando, reduzido a dez, baixou tanto as linhas que, de acordo com dados Goal Point, permitiu ao adversário 71 ações dentro da área – um recorde esta época em equipas das seis maiores Ligas europeias. É que, como referiu o treinador, a expulsão aconteceu na zona taticamente mais complexa da sua equipa. A capacidade mutante deste SC Braga parte da transformação do central esquerdo em lateral quando a equipa recupera a bola, assim soltando o ala/lateral esquerdo para zonas e funções mais ofensivas, dessa forma permitindo que o avançado esquerdo procure espaços mais interiores, em apoio mais próximo ao ponta-de-lança e ficando mais perto da zona de definição e finalização. Do outro lado, o avançado direito envolve-se com o ala/lateral direito numa série de movimentos pendulares, ora abrindo na linha quando este vem dentro, ora procurando também ele o jogo interior e o diálogo com os médios quando o lateral segue por fora. Parece tudo demasiado complexo, mas não é e até sai fluído. É aí que entra a questão das rotinas e da capacidade para os jogadores saberem, de olhos fechados, onde têm de estar e para onde devem fazer seguir a bola. Do ADN, portanto.
Ora foi aqui que o FC Porto falhou. Não está em causa se foi ontem mais defensivo ou mais ofensivo, ao abdicar de Taremi por Díaz. Se poupou titulares (Sérgio Oliveira e Zaidu) ou se eles não estavam nas melhores condições. No plano teórico, as ideias levadas ao jogo por Sérgio Conceição até faziam sentido. Com Sarr a lateral-esquerdo, sem se soltar tanto como habitualmente faz Zaidu, mantinha sempre uma linha de três atrás. Essa opção, no entanto, já recomendava a chamada de um avançado que, a jogar pela esquerda, tivesse mais jogo de corredor do que Taremi – daí a chamada de Díaz. O que é que falhou, então? Falhou o ADN, claramente. Falhou a tal capacidade dos jogadores para, sem precisarem de perder sequer uma fração de segundo a pensar, saberem o que tinham de fazer e onde tinham de estar. E isso vem do facto de este FC Porto ser mais reativo do que afirmativo. Basta ver o lance do primeiro golo. Nesse lance, Sarr nem fechou dentro, obrigando Pepe a fugir do centro, nem fechou fora, por onde estava a entrar Piazon, dando-lhe tempo e espaço para causar o desequilíbrio que, com a participação de Al Musrati e Ricardo Horta, originou o golo de Ruiz. Tal como disse no final Conceição – ainda que sem referir o jogador – foi um erro individual, mas facilitado pela complexidade coletiva. Ora o coletivo deve servir para que uma equipa valha mais do que a soma dos seus onze jogadores e não para a diminuir. É só não complicar.