Uma equipa que passa a bola
Portugal voltou a superar os 500 passes num jogo. E isto mostra uma intenção, que presidiu à escolha do onze. Já vos tinha dito que o problema não é ser defensivo ou ofensivo. É ser coletivo.
Fernando Santos tinha prometido, depois a derrota com a Sérvia, que ia mudar, e ainda que muitos de nós – eu incluído – não tivéssemos levado a coisa tão a sério assim, projetando uma equipa de continuidade com o passado recente, a verdade é que mudou mesmo. A forma como a equipa jogou nos 3-1 à Turquia, ontem, no Dragão, contudo, dá razão aos que, como eu, sustentam que o problema fundamental da seleção nacional não é o ser mais ou menos ofensiva, mas sim ser mais ou menos coletiva. Essa questão, conforme provarei mais à frente, resolve-se com o crescimento do protagonismo a meio-campo de jogadores como Moutinho e Bernardo Silva. E o dilema da abordagem defensiva de uma equipa com um meio-campo de pesos-pluma também ficou bem encaminhado com a introdução de um jogador como Otávio, que lhe deu agressividade defensiva a partir da frente. Há coisas a resolver – e também vos vou dizer quais – mas a equipa melhorou.
Ainda que tenha visto os turcos falharem um penalti perto do fim, que podia ter deitado tudo a perder, Portugal mereceu a vitória que deixa a equipa na final do playoff contra a surpresa que foi a Macedónia do Norte. A ideia de Santos para fazer o onze foi no sentido de resolver a questão da ligação de uma equipa que, a jogar e a pensar sobretudo de forma individual, não conseguia encontrar em si mesma os argumentos para controlar os jogos – isso faz-se pela circulação de bola, pelo passe, e não pelo bater de bolas longas em busca da velocidade de avançados como Ronaldo ou Jota. Ontem, Portugal fez alterações forçadas, como as trocas de Cancelo por Dalot, de Rúben Dias por Fonte ou de Pepe por Danilo, mas também mudou coisas em função de ideias que queria ver implementadas. A troca de guarda-redes terá tido a ver com a maior capacidade de Diogo Costa jogar com os pés face a Rui Patrício. Não estava à espera que Santos mudasse já, porque a posição de guarda-redes é pouco suscetível a estas mudanças de hierarquia, mas a verdade é que há uma relação evidente entre esta troca e as mudanças feitas a meio-campo.
Ontem, Portugal surgiu com um meio-campo formado por Moutinho, Bernardo Silva e Bruno Fernandes. Defensivamente, Moutinho colocava-se como vértice mais recuado do triângulo, com Bruno e Bernardo à sua frente. Ofensivamente, tanto Moutinho como Bernardo vinham com frequência mostrar-se aos centrais, dar-lhes linhas e passe e alternativas de saída de bola com controlo. O resultado foi o aumento do número de passes feitos pela equipa. De acordo com os dados da aplicação SofaScore, contra a Sérvia Portugal tinha feito 344 passes; ontem fez 527. Cresceu, também, a eficácia, dos 78 por cento de passes certos contra os sérvios para os 85 por cento de ontem. Os 527 passes tentados no jogo de ontem são o terceiro total mais elevado da equipa nacional em jogos de competição desde que começou esta qualificação para o Mundial de 2022, contra o Azerbaijão, em Turim, fez ontem precisamente um ano – e nesta amostra incluo os jogos do Europeu de 2020. Acima dos 527 de ontem estiveram dois jogos: esse Portugal-Azerbaijão, em que o adversário abdicou de jogar e se concentrou só na defesa da sua baliza, no qual tentámos 732 passes, e o Portugal-Irlanda do Algarve, no qual fizemos 603 passes.
Quer saber o que há em comum nestes três jogos? O meio-campo. Contra o Azerbaijão este foi formado por João Moutinho, Rúben Neves e Bernardo Silva. Contra a Irlanda ali estiveram João Palhinha, Bruno Fernandes e Bernardo Silva. E, no entanto, nem um nem o outro jogo foram brilhantes – sobretudo o do Algarve contra a Irlanda, que esteve nas raias do miserável e foi salvo por aqueles dois golos de Ronaldo no final. Porquê? Porque o meio-campo não joga sozinho, porque uma equipa é um todo de complementaridades e, nesses dois dias, elas não estavam a ser conseguidas. Contra o Azerbaijão, no ataque jogaram Pedro Neto, André Silva e Ronaldo. Contra a Irlanda o trio da frente era formado por Rafa, Ronaldo e Jota. O que é que faltou nos dois casos? Duas coisas. Falta de capacidade para os avançados ligarem jogo com os médios, já que, dos cinco, só um (André Silva) é ou pode ser jogador de ligação – Neto, Rafa, Jota e Ronaldo são, sobretudo, jogadores de aceleração e de iniciativa individual. E capacidade de pressão. Jogando com Otávio a partir da frente – ou com Matheus Nunes, que entrou na ponta final e, tal como o médio portista, também fez um golo –, a equipa ganha esse poder de pressão. Ontem, até ao golo de Portugal, a Turquia não jogou, porque Portugal não deixou, com um excelente pressing. E isso foi muito mais importante do que a suspeita de que a equipa fosse importar as dinâmicas do FC Porto – o tal híbrido entre o 4x4x2 e o 4x3x3, que de facto não aconteceu.
A questão, portanto, repito, não é se a equipa é muito defensiva. Mesmo sem ter um “trinco” – expressão de que não gosto nada – Portugal foi ontem uma equipa mais defensiva do que quando, por vezes, o utiliza, porque abdicou de um avançado por um médio. E creio que não fica menos coletiva se utilizar esse “trinco”, ainda que muito disso dependa de quem ele for. William ou Rúben Neves, por exemplo, são mais coletivos do que Palhinha ou Danilo, cuja introdução dependerá sempre do nível de jogo coletivo e de ligação dos outros dois médios – aspeto em que Moutinho, Bernardo e Vitinha, por exemplo, estão bem à frente dos outros, como estarão João Mário ou Sérgio Oliveira, se voltarem a reencontrar o futebol da época passada. Isto é: parece possível jogar com Palhinha (ou Danilo) na posição, se os outros dois médios forem eminentemente coletivos, da mesma forma que para ter um médio ofensivo de cariz mais individual (como Bruno Fernandes, Renato Sanches ou até Matheus, se jogar ali) é preciso ter dois que pensem mais coletivo.
Mas é evidente que Portugal não foi uma equipa perfeita. Longe disso. A intensidade do pressing inicial era insustentável durante mais do que 15, 20 minutos e, assim sendo, é preciso encontrar fórmulas para gerir o jogo com a bola. E isso passa por ter gente atrás com capacidade para jogar – coisa que ontem não foi evidente, apesar da troca de Rui Patrício por Diogo Costa indicar essa intenção. Melhorará com Cancelo, Rúben Dias, Pepe e um central que o venha a substituir? Tem de melhorar. Mas é aí, bem como na eterna questão da compatibilização do futebol de Ronaldo com esta forma de pensar o jogo, que estão os maiores desafios para os próximos tempos. Ontem, Fernando Santos parece ter encontrado o caminho e tem mais um jogo, na terça-feira, para provar que merece explorá-lo. Mas aqui chegado compreender-se-á ainda pior que volte a enveredar por atalhos que nos desviem do objetivo final. E esse, perdendo ou ganhando, é ter uma equipa que passe a bola.
Além de todos os aspetos positivos realçados, há que evidenciar que FS calou as bocas de muitos adeptos, pois a aposta em Otávio foi um sucesso, não só pelo que jogou mas também pela entrega que o carateriza e que transportou para a seleção. Muita gente deve estar a morder a língua, pois os naturalizados têm sido exemplares na entrega e dedicação à seleção que representam orgulhosamente.
Boas Tadeia :)
Hoje até eu venho aqui por “postas de pescada”, no meu caso “postas de bacalhau” :)
Parece-me que F.S., e a sua equipa técnica, estavam acomodados e foi preciso um susto para sairem da rotina, é assim muitas vezes e com todos nós.
Ontem quando vi o onze inicial fiquei com a sensação que ia correr bem.
Apesar das ausências forcadas lia-se claramente uma vontade de fazer diferente.
A inclusão de Diogo Costa, um GR de grande qualidade, era um sinal de mudança claro, sobretudo para o interior do grupo.
Tenho a sensação que Rui Patrício está ainda em processo de mudança [bem como o Roma] e na realidade este ano teve menos grau de dificuldade que DC, que jogou a Champions enquanto que R.P. jogou a Conference League, o que faz com que a mudança seja mais racional do que aparenta.
Não sendo um grande apreciador desta equipa técnica tenho lhe tirado o chapéu muitas vezes.
Mas nada na vida é perfeito :)