Um republicano numa monarquia
Rui Costa quer reformar o regime do Benfica sem mencionar ou afrontar o "vieirismo". Mas, por mais incómodo que isso possa ser, há que olhar para o elefante na sala. É pura ciência política.
Há mais do que um plano para analisar a atuação de Rui Costa enquanto presidente-candidato e herdeiro do Benfica. O antigo craque dos relvados tem razão na indignação face a algumas coisas que dele tem dito a oposição e não é por, estrategicamente, ter apontado as eleições para uma altura de vitórias desportivas do futebol que o seu benfiquismo ou a sua seriedade podem ser postos em causa – quanto muito seria idiota se as marcasse para uma altura em que a equipa acumulasse derrotas. Mas a bem da sua tranquilidade e da solução diretiva que preconiza para o clube, Rui Costa vai ter de deixar de se incomodar quando o associam ao estado em que o clube se encontra após duas décadas de “vieirismo”, boa parte das quais com ele na posição que agora recusa, a de príncipe-herdeiro. Rui Costa quer ser um democrata numa ditadura, um republicano numa monarquia – e a reforma até pode vir de dentro, mas passará obrigatoriamente pelo reconhecimento do estado a que as coisas chegaram. Caso contrário acaba sempre por gerar revoluções.
Vamos ser realistas: seja imediatamente ou, como pretende a oposição, com mais umas semanas de espera, para se organizar, Rui Costa vai continuar a ser o presidente do Benfica, sufragado nas urnas pelos sócios. Com voto físico ou eletrónico, com a direção que esteve com Vieira ou uma direção cheia de caras novas, vai ganhar as eleições. O único candidato que carregava uma dinâmica capaz de assustá-lo era Noronha Lopes, que já disse que não concorre. E esta seria, por isso, a altura ideal para pôr tudo em pratos limpos, para sabermos o que pensa Rui Costa do que se passou nos últimos 20 anos no Benfica. Entendo a gratidão institucional para com Vieira, que na verdade foi solução muito antes de se ter transformado em problema. Tal como compreendo que a existência de uma relação pessoal com o seu antecessor possa atrapalhar esta necessidade de esclarecimento – ainda que suspeite que Rui Costa carrega aos ombros a necessidade de se justificar como herdeiro de um “reino” que nunca lhe seria transmitido, pelo menos se isso dependesse da vontade do “monarca” que o antecedeu.
Perante este cenário, a Rui Costa restam dois caminhos. Ou se solidariza com Vieira e com as faltas de transparência de que o atual regime vem sendo acusado pela oposição – algumas das quais ficaram à vista na última Assembleia Geral – ou renega tudo aquilo que se passou no pináculo do “vieirismo” e assume que muitas destas situações de que agora o regime é acusado não passaram por ele. O primeiro caminho anula a vontade de reforma que julgo ver nele, o segundo pode diminuí-lo por, estando lá dentro, ter passado ao lado do que de grave se passava. O que não faz sentido é o presidente da Assembleia Geral recusar a votação do regimento eleitoral no local ele tem de ser votado e depois vir esclarecer que o dito cujo seja mudado, porque Rui Costa, na sua magnanimidade, a tal acedeu. O que não faz sentido é o clube vir agora dizer que estas eleições serão cobertas pela BTV, com direito a entrevistas, campanha e debate entre candidatos, sem explicar por que razão isso não aconteceu também nas eleições anteriores. Já para não dizer que, fosse eu candidato a alguma coisa nalgum dos três grandes clubes portugueses – qualquer deles –, a última coisa que eu quereria era ter os canais desses clubes a acompanhar as campanhas ou a moderar debates – mas isso já é conversa para outro palco.
Consigo perceber em Rui Costa algum incómodo quando é associado aos caminhos recentes trilhados pelo Benfica. Não duvido do seu amor ao clube, da dedicação que sempre mostrou em anos de serviço, primeiro como atleta e depois como dirigente. Mas todos nós, em certas alturas da vida, escolhemos o caminho mais fácil para chegar a objetivos – e nem todos temos a possibilidade de o emendar, como Rui Costa está a ter. Mal comparado, porque o Benfica sempre teve tradição democrática e Vieira não representou para o clube o que Salazar foi para o país, olho para Rui Costa e vejo o Marcelo Caetano de 1968, quando o ditador caiu da cadeira. Contudo, a “Primavera Marcelista”, montada pelo novo Presidente do Conselho em cima da vontade reformista dos deputados da “ala liberal”, acabou por fracassar, porque nunca se afastou de hábitos antigos e das personalidades bafientas do antigo regime, gerando o 25 de Abril de 1974. Porque há alturas em que não dá para ficar em cima da ponte: ou se fica onde se está ou se passa para a outra margem. Essa é a decisão que Rui Costa tem de tomar se não quer ser para sempre um republicano infeliz e à procura de explicações mal paridas para a monarquia que herdou.