Um processo ao futebol português
Ao pé do que será preciso para arrasar os bairros de lata que se alimentam da política de comunicação e propaganda dos grandes, convencer os árbitros a deixar jogar mais é brincadeira de crianças.
Parece haver consenso nas declarações dos principais agentes do futebol português: um pouco por todo o lado, de treinadores a presidentes, toda a gente concorda com os méritos da realização de aquilo a que Luís Filipe Vieira chamou uns “Estados Gerais”. O problema, no entanto, está nos atos. Porque uma coisa é o que se diz e outra o que se faz. Porque basta olhar um pouco à nossa volta para perceber que temos o caldo de cultura ideal para que o jogo se transforme numa gigantesca poça de lama onde todos continuam a chafurdar. E essa é a grande diferença entre o futebol nacional de hoje e as circunstâncias em que, noutros locais, este risco também foi real.
Em Inglaterra, no último fim-de-semana, tivemos o caso Maguire-Shaw. Aconteceu após o 0-0 entre o Chelsea e o Manchester United, quando Luke Shaw revelou que o árbitro tinha dito ao capitão do United, Harry Maguire, que não ia marcar um penalti a favor dos Red Devils porque isso causaria uma enorme confusão. Ole Gunnar Solskjaer, treinador do Manchester United, ainda veio falar da influência do site do Chelsea e da enorme importância que uma publicação lá feita a propósito do total de penaltis de que a sua equipa já tinha beneficiado na Premier League teria tido no comportamento do árbitro, mas ninguém o levou a sério. No ESPN FC, para mim o melhor programa televisivo sobre futebol internacional (acerca das Big Five Leagues), ainda se riram dele: “Então mas agora, para preparar um jogo, o treinador anda a ler o que dizem os sites dos adversários?”.
Os ingleses, de facto, não estão habituados a este tipo de lixo, a que nem os jornalistas, nem os comentadores, nem o público aderem. É uma questão cultural, que isto é coisa mais latina. Ainda me lembro quando, em início de carreira – no início dos anos 90, pré-disseminação de canais de televisão à escala global –, sempre que ia a Itália gastava horas no quarto de hotel a ver coisas como “Il Processo di Biscardi” e a achar que aquilo era espetacular. O programa, montado em cima da ideia de um processo judicial, era apresentado por Aldo Biscardi, tinha produção sumptuosa – como tudo na TV italiana daquela altura –, os protagonistas em estúdio – chegou a estar lá Diego Maradona – e era habitual acabar em gritaria. Recordo-me de uma queixa apresentada pela Associação Italiana de Árbitros, gerando um processo que Biscardi ganhou em tribunal, sustentando que o programa que ele próprio conduzia não fazia jornalismo mas sim entretenimento “de baixa credibilidade”.
A retórica do excesso, que esteve também na base de sucessos espanhóis, como o popular “Chiringuito”, que já não conheço tão bem porque apareceu numa fase da minha vida menos dada a consumir esses produtos, continua a exercer um enorme poder de atração sobre as massas. A diferença é que o “Processo” – que em Itália começou na Rai e, 40 anos depois, ainda sobrevive, mas já sem o criador, entretanto falecido, e na 7 Gold – perdeu influência. Lá, como em todo o lado, há agentes desportivos desonestos e jornalistas pouco escrupulosos: no processo Calciopoli, há escutas nas quais se ouve o ex-diretor geral da Juventus, Luciano Moggi, a instruir Biscardi acerca do que dizer em antena. Lá, no entanto, ao contrário do que acontece cá, as autoridades atuam e o vírus é combatido na génese. Em resultado disso, o lixo continua a existir – como há bairros de lata em quase todas as cidades – mas os clubes aprenderam a fugir dele. E as pessoas não vão lá.
Não deixa de ser curioso que, no dia em que pediu os “Estados Gerais” do futebol português, Luís Filipe Vieira tenha lançado uma insinuação tão mal sustentada como injustificável acerca da origem do surto de Covid19 na equipa do Benfica, deixando no ar que o vírus pode ter sido contraído no balneário do Dragão. Ou que, no mesmo dia em que Sérgio Conceição pediu aos jornalistas para falarem “do jogo” e os desafiou a fazerem programas acerca “da forma como o FC Porto “bloqueou a Juventus”, o departamento de comunicação do clube tenha lançado um vídeo que de jogo tem zero, pois é acerca do total de vezes que os membros do banco do Sporting se levantaram durante o último clássico. O Sporting e o SC Braga também não são inocentes – estão é nos dois primeiros lugares e, por isso, andam mais calmos, mas quando perdem um par de jogos também lhes estala o verniz. É por este tipo de comportamentos que devem começar os “Estados Gerais” do futebol português, nos quais, desde já digo, gostaria imenso de participar.
Resolver esta questão passa, muito basicamente, por arrasar toda a política de comunicação e propaganda dos grandes, porque é ela que está na génese do lixo que anda aí a céu aberto a levar o cheiro nauseabundo às narinas de quem quer apreciar o futebol e contribuir para que o negócio prospere. Depois de se resolver esse tema, podemos entrar nos mais fáceis. Ao pé disto, convencer os árbitros a apitarem menos, os jogadores a atirarem-se menos para o chão e os treinadores a incentivar menos esse tipo de comportamentos é brincadeira de meninos.