Um país ou uma casa de malucos
Volta a Champions e isso devia permitir ao adepto desligar das centrais de propaganda que estão a destruir o futebol em Portugal, pois mais do que os árbitros, já condicionam os jogadores.
Hoje é dia de Liga dos Campeões e amanhã também, o que é bom sinal, porque em Portugal vamos todos desligar o chip da loucura que nos envergonha a cada fim-de-semana de futebol. Seja porque os excessos são calculados, se alimentam da brandura que revelamos com os que destroem o negócio e depois se encolhem quando há medo de castigos duros, da UEFA, por exemplo, ou porque mais do que à defesa do próprio eles se devem ao ódio pelo alheio e este se alimenta das centrais de propaganda montadas pelos clubes como um culturista batoteiro se alimenta de esteroides anabolizantes, a verdade é que quando chega a Europa os nossos protagonistas passam de lobos a cordeiros. E, ainda que acabe à mesma por nos prejudicar, isso permite-nos, então, apreciar o futebol.
Seria muito fácil vir aqui agora falar apenas do treinador dos sub23 do Leixões, cujo pecado maior, repito, não me parece ter sido qualquer indício de machismo. O problema ali, a julgar pela reação em massa de dirigentes e adeptos do clube no seguimento dos incidentes, não me pareceu ser exclusivo ou sequer ter começado em José Augusto Faria, que entretanto foi dispensado do clube. O problema foi de falta de respeito geral com toda a gente – adversários, árbitros, jornalistas, adeptos… –, calhou ser corporizado numa expressão infeliz – “os homens do futebol” – mas é cultural, aceite como natural e encontra acolhimento na idiotice que é o proverbio “quem não se sente não é filho de boa gente”. É que quem se sente e se excede na reação a uma qualquer injustiça também não o é. Porque foi isso que aconteceu com quase toda a gente do Leixões naquele dia. E é isso que muitas vezes em Portugal se confunde com espírito de grupo ou solidariedade coletiva, como se uma instituição respeitável pudesse comportar-se como um grupo de hooligans.
Seria ainda assim relativamente fácil falar do comportamento arruaceiro de Miguel Cardoso, treinador do Rio Ave, que ergueu os dois dedos do meio em direção ao banco do Boavista depois de Fábio Coentrão ter feito o golo do empate no jogo entre ambos, já em período de descontos. Cardoso, com quem falei um par de vezes e me pareceu sempre um tipo educado e bem formado, tem muito mais Mundo do que Faria, pode ter sentido como poucos aquele golo, que lhe garantiu um ponto numa luta pela fuga à despromoção que vai aquecer muito, mas tem de se lembrar sempre que está num relvado com dezenas de câmaras à volta e o seu comportamento serve de exemplo a muita gente. Não está ali obrigado – foi ele que escolheu lá estar. E por isso mesmo, por mais que a cultura do futebol em Portugal lhe meta na cabeça, semana após semana, que as cores dele estão a ser injustiçadas, seja porque lhe roubam golos ou penaltis, porque lhe expulsam jogadores ou porque não tem a visibilidade que gostaria na comunicação social, nada justifica aquele tipo de reação. Ali, o futebol perdeu mais gente. E, além de ser vitalidade, gente aqui também é sinónimo de receita.
Mas não podemos ficar apenas pela segunda metade da tabela. É inacreditável como o Rúben Amorim que se vê sorridente e bem humorado nas conferências de imprensa se transfigura em jogos que não ganha e já foi expulso quatro vezes. É impossível subscrever atitudes como as de Sérgio Conceição, que este fim-de-semana teve uma tarde tranquila em Tondela, mas que ainda recentemente esteve para andar à pancada com Paulo Sérgio. E é inaceitável que um treinador com a experiência de Jorge Jesus tenha a desfaçatez de acusar um jogador do adversário de tentar magoar um dos dele de propósito, como ele fez com Stephen Eustáquio, na sequência do lance com Weigl, que lhe valeu a expulsão, facto ao qual não serão alheios os rumores de que o médio pacense pode estar a caminho do FC Porto. Estamos a falar de gente que já anda nisto há décadas e que tem a obrigação de ser um pouco mais invulnerável ao lixo que sai todos os dias das centrais de propaganda que todos os clubes têm a funcionar, uns com mais meios, outros com menos, mas todos com o mesmo objetivo: condicionar o ambiente.
É que o problema não são só os programas de TV que ajudam a convencer o adepto de que as cores dele são constantemente prejudicadas, encontrando a polémica que se transforme em espetáculo e o efeito-espelho que possa ajudar esse mesmo adepto a permanecer na bolha de realidade virtual que as redes sociais lhe servem todos os dias. O problema é que as centrais de propaganda – das quais se alimentam alguns desses comentadores “engajados”, nem que seja por simpatia – começam a ser demasiado impositivas na realidade do dia a dia. E além de condicionarem o ambiente – árbitros, dirigentes neutros – começam a condicionar os próprios atores e a fomentar a revolta que leva a estes comportamentos. Até gente com a experiência e o Mundo dos principais protagonistas do futebol nacional começa a agir de acordo com a agenda ditada pela propaganda. Treinadores e dirigentes comportam-se como se o Mundo todo se tivesse unido contra as suas cores, porque é isso que vão lendo nessas publicações e newsletters. E os jogadores desatam a cair ao primeiro sopro também nos jogos internacionais, porque aquilo que lhes disseram foi que em Portugal esses lances só não dão falta porque há uma conspiração arbitral contra o emblema que defendem.
Daqui à camisa de forças e ao internamento no manicómio, ao futebol português já não faltam muitos passos.