Um jogo anormal numa época anormal
A boa notícia é que ninguém se magoou. Mas é preciso pensar melhor os calendários internacionais para evitar constrangimentos como este Portugal-Andorra.
Não me lembro de alguma vez um selecionador nacional ter dito o que Fernando Santos disse anteontem – que preferia não ter de fazer um particular, que a equipa jogou ontem contra Andorra. Felizmente correu tudo bem. E quando digo isso nem estou a pensar nos efeitos que um eventual mau resultado, como o que a França fez com a Finlândia no seu próprio particular inconveniente, pudessem vir a ter na preparação do jogo que interessa, que é o de sábado. Com esta equipa de Andorra não havia esse risco. Estou a pensar que felizmente ninguém se magoou naquela espécie de jogo de solteiros contra casados. Porque, sendo verdade que a treinar também há lesões – veja-se o que aconteceu em Inglaterra a Joe Gomez, que deve ter perdido o resto da época à conta de uma lesão num treino antes do Inglaterra-Rep. Irlanda –, as instâncias internacionais continuam a gerir tudo como se esta fosse uma época normal. E não é. Nem pouco mais ou menos.
Em condições normais as coisas já não fazem muito sentido. Há alguns anos que me bato por uma organização de época diferente, com menos interrupções para jogos de seleções, ainda que mais longas. Como as coisas estão ninguém fica bem. Nem os treinadores de clube, que de três em três semanas se ariscam a ficar sem mais de metade dos planteis, nem os selecionadores, que quando recebem os internacionais têm de os levar a jogo com menos de um treino. Com as contingências especiais desta época – mais curta, a começar bem mais tarde, a precisar de acabar cedo por causa do Europeu, com Liga das Nações pelo meio – tudo isto se agrava. E se não era possível estar a mudar toda a orgânica da coisa do pé para a mão, sem a estudar devidamente, ou porque havia contratos assinados e a precisarem de ser cumpridos, podiam ao menos ter cancelado esta ronda de amigáveis. Sou daqueles que pensam que as equipas crescem mais a jogar do que a treinar, mas há limites – e seguramente que nenhuma equipa cresce sem treinar também.
O problema é que aqui entra… o dinheiro. A solução que defendo – menos interrupções para as seleções, ainda que mais longas – esbarra numa questão fulcral: quem é que paga? Como vão os clubes cumprir as responsabilidades se estiverem privados dos jogadores por períodos mais longos e, portanto, privados de competição e de receitas? Ora essa é uma das coisas que nem tem discussão. Pagam a FIFA e a UEFA, naturalmente, que as organizações de Mundiais e Europeus de futebol são das coisas mais lucrativas no Mundo atual e fazem-se à custa da presença constante dos melhores jogadores, pagos pelos maiores clubes. Para a FIFA, a UEFA e as Federações nacionais, é tudo lucro, que depois pode ou não ser investido em objetivos importantes, como a formação ou o futebol de escalões inferiores. E, não chegando ao ponto de subscrever os delírios de Toni Kroos, o internacional alemão do Real Madrid, que numa entrevista a um podcast considerou que a criação de novas competições “serve apenas para absorver economicamente e espremer fisicamente os jogadores”, concordo que antes desta redistribuição deve haver mais algum cuidado com a camada de topo da pirâmide, com os profissionais de elite.
“Quando as coisas estão bem, deve-se deixá-las ficar como estão”, acrescentou Kroos. Ora Kroos tem razão numa coisa: quando defende que devia haver mais poder dos jogadores nisto do futebol internacional. Ou pelo menos mais razoabilidade. Já a defesa do “status quo” permanente roça um pouco a insanidade. Basta pensar que se toda a gente sempre tivesse pensado assim, ainda hoje não teríamos competições europeias ou campeonatos do Mundo, devidos à visão de Gabriel Hanot ou Jules Rimet, e Kroos seria um anónimo contabilista ou talhante em Greifswald, na Pomerânia. Aliás, o problema não é, ao contrário do que diz Kroos, haver uma Liga das Nações ou um Mundial de clubes. Essas provas foram um claro passo em frente na implantação do futebol à escala global. O problema é não se terem dado passos no sentido de uma melhor articulação dos calendários internacionais em abstrato e não se fazer uma espécie de navegação à vista nesta que é uma época muito especial, devido às limitações impostas pela pandemia.
Se a Liga das Nações se destinou a dar interesse a datas ocupadas com jogos particulares totalmente dele desprovidos – como aquele Portugal-Andorra de ontem – alguém devia ter tido o bom-senso de anular os compromissos marcados para o meio desta semana, que além de sobrecarregarem os jogadores em termos físicos e de servirem para rigorosamente nada ainda vieram criar situações de risco de transmissão da Covid19, por via de viagens que não eram absolutamente necessárias. “Com um Mundial marcado para o Inverno de 2022, houve a oportunidade de pensar de forma diferente este ano, mas toda a gente tentou concentrar o calendário num período mais curto. Ninguém cedeu”, lamentou-se ontem o selecionador inglês, Gareth Southgate, ele próprio a braços com uma situação de incerteza a propósito do local do jogo com a Islândia, na quarta-feira que vem. “Teremos mais lesões e toda a situação é triste. Esta discussão já devia ter tido lugar no Verão. Podíamos ter atrasado o início das Ligas, como podíamos ter atrasado o calendário internacional”. No fundo, é preciso falar mais. E repensar todo o edifício de um jogo que corre o risco de se perder.