Um ensaio sobre responsabilidade
Luís Filipe Vieira não pode dar ouvidos ao instinto de auto-preservação ou a quem o convence de que quando as coisas correm bem foi ele a decidir e que quando correm mal já foi por pressões externas.
Uma das frases sempre presentes em qualquer discurso ou entrevista de Luís Filipe Vieira nas quase duas décadas que leva como figura do futebol nacional diz que “o Benfica não é gerido de fora para dentro”. Os maiores sucessos da sua carreira como líder do clube passaram por aí. E no entanto, na tentativa de explicar o fracasso que tem sido esta época no futebol, seja porque é para aí que o dirige o instinto de auto-preservação ou porque para aí o conduzem discursos escritos sobretudo para lhe agradar como líder supremo, Vieira justificou hesitações e mudanças de rumo com a noção de que é presidente mas não é “dono” do Benfica. Não é, de facto. Mas, como o próprio realçou também naquela conversa, ainda recentemente viu o mandato relegitimado nas urnas. Tem mais é que decidir e que parar de se justificar com as opiniões dos outros.
Quando segurou Jorge Jesus, em 2013, depois de o Benfica ter falhado sobre a linha de meta o terceiro campeonato seguido – o tri do FC Porto – e de ter perdido as finais da Liga Europa e da Taça de Portugal, Vieira deu um exemplo daquilo que defende. Toda a gente queria o treinador dali para fora. O próprio presidente contou nesta conversa na BTV que, na tribuna de honra do Jamor, após a final da Taça de Portugal, recebeu o treinador todo cuspido (supõe-se que por benfiquistas frustrados com a derrota) e que, depois de o confortar, se virou para trás e já lá não tinha ninguém (supõe-se que os membros da sua própria estrutura). E, mesmo assim, manteve-o, abrindo caminho para a conquista de quatro campeonatos seguidos, dois com Jesus, dois com Rui Vitória. Aí, o Benfica foi gerido de dentro para fora, como tanto gosta de dizer o presidente. Depois disso, Vieira pode iludir-se com as bajulações dos que o rodeiam e dão a ideia de sempre o apoiarem, mas as decisões continuaram a pertencer-lhe a ele e não aos “pulhas” que faziam pressão.
Foi Vieira quem, eventualmente por ter percebido que com Jesus nunca iria dar corpo ao seu sonho de ter um Benfica assente na formação do Seixal, despachou o treinador em 2015, não lhe renovando o contrato e empurrando-o para os braços de Bruno de Carvalho – na verdade o plano era enviá-lo para o Qatar. Foi Vieira quem contratou Rui Vitória e quem, com Jesus do outro lado da Segunda Circular, ganhou as Ligas de 2016 e 2017. Também foi Vieira quem perdeu o campeonato de 2018 e estava à beira de perder o de 2019, quando despediu Vitória e apostou em Bruno Lage, assim arrancando para a recuperação montada em miúdos como João Félix, que o treinador anterior tardava em promover. Mas também foi Vieira quem, farto de ouvir dizer – e aqui nem creio que tenha sido por uma grande massa adepta, mas apenas por um par de comentadores com assento em programas de TV – que não se podia ganhar nada com os miúdos, despediu Lage e apostou no regresso de Jesus e em nova mudança de rumo no seu sonho de um Benfica assente na formação. E, por mais pressões que apareçam – das aceitáveis, como o comentário televisivo de adeptos, às inaceitáveis, como as ameaças que têm sido vistas em tarjas perto do Estádio da Luz – será Vieira quem vai decidir se fica com o treinador no final da época ou se o despede e vai à procura de novos rumos e de novas soluções.
No fundo, aquilo que Luís Filipe Vieira tem de perceber é que, por mais que os engraxadores de serviço se curvem perante a sua sempre luminosa presença, enaltecendo-lhe os méritos nas conquistas e desviando as balas dos erros, quem decidiu no Benfica nestes 20 anos foi sempre ele. Foi ele que decidiu manter Jesus quando os adeptos o queriam de lá para fora. Foi ele que decidiu despachar Jesus quando parte dos adeptos temia ficar sem ele e outra parte exasperava porque estavam a ser desperdiçados talentos como Bernardo Silva ou João Cancelo. Foi ele que decidiu despedir Rui Vitória ou Bruno Lage, de acordo com a opinião da maioria dos adeptos com peso na opinião pública. Foi ele que decidiu recuperar Jesus, dessa forma enfiando um enorme tiro no porta-aviões da formação, acolhendo como boa a corrente de opinião que lhe dizia que não era possível ganhar com miúdos. Foi ele que validou todas as aquisições para o plantel deste ano, por muito que tenha explicado, caso a caso, que houve aval do treinador. E será ele quem decidirá, nos tempos mais próximos, se Jesus fica ou não no Benfica.
No fundo, até foi por aí que começou a entrevista a Luís Filipe Vieira. “O principal responsável só posso ser eu. Na hora da derrota, não vale a pena andar atrás de fantasmas”, afirmou o presidente. Sejam esses fantasmas o vírus da Covid19, os árbitros, os adeptos, a oposição ou os marginais que lhe fazem ameaças de morte.