Todos lá atrás!
A suspensão de todos os eventos desportivos "não profissionais" faz-me recuar à anedota do treinador que dizia uma coisa aos jogadores e que, com gestos espalhafatosos, indicava outra para o público.
Uma das anedotas mais antigas a respeito de treinadores de futebol é a que coloca o líder de uma equipa a gritar para os seus jogadores “Tudo lá atrás!!!” ao mesmo tempo que, com os braços erguidos, à sinaleiro, em postura corporal espalhafatosa, parecia indicar o caminho da baliza adversária. É uma anedota de outros tempos, dos tempos em que a reação do público era um fator a ter em conta – hoje em dia não há sequer público, pelo que o treinador já não precisa de mentir com a linguagem corporal –, mas pode aplicar-se àquilo a que já chamei a esquizofrenia dos decisores políticos a propósito da situação do desporto nesta pandemia que nos tem atemorizado. Não sou nem negacionista nem proibicionista, estou consciente da necessidade de ter cuidado, mas não consigo entender – quanto mais apoiar – a decisão de suspender todo o desporto à exceção dos dois principais escalões do futebol durante o fim-de-semana que aí vem, sobretudo por surgir uma semana depois da complacência perante a irresponsabilidade da Fórmula 1.
A ideia com que fico é a de que as decisões são tomadas num sentido e anunciadas noutro, como a do treinador da anedota. Anunciam-se cuidados extremos, mas só quando ninguém lá fora está a ver. Proibiu-se o desporto de formação, que ainda nem conseguiu pôr a cabeça fora de água desde Março, e agora cancela-se aquilo que na teoria é desporto não profissional – embora na prática seja coisa bem diferente – uma semana depois de se ter permitido uma inconsciência tão grande como foi a aglomeração de público nas bancadas da Fórmula 1 e no mesmo dia em que as autoridades agem de forma complacente com o amontoado de gente que acorreu à Nazaré para ver o surf. No surf havia agências de notícias vindas do estrangeiro e uma atitude mais enérgica face ao incumprimento do decreto-lei que força, por exemplo, o uso de máscara, seria péssima publicidade? Certo. E na Fórmula 1? Cedemos na segurança sanitária, fechámos os olhos à inconsciência motivados pela vontade de assegurar que o regresso do circo a Portugal após 24 anos em que fomos ignorados pela organização não tenha sido episódio único, já a pensar no mais longo prazo e no que aquele fim-de-semana pode valer à economia em anos futuros?
Afinal é para se ser securitário ou complacente? Se o que está em causa nos próximos dias é a intenção de evitar que as pessoas se aglomerem nos cemitérios, fará algum sentido impedir eventos desportivos que até decorrem sem público, como os campeonatos de outros escalões de futebol ou das modalidades? Ou o que está em causa é o número crescente de infetados que os jornais de TV continuam a anunciar a uma cadência diária como se de uma novela da vida real se tratasse, contribuindo para o medo e o alarmismo, e nesse caso, como os números não vão baixar (estamos a entrar em Novembro…), a suspensão será para manter até que a Primavera venha aliviar as coisas? Com que cara se vai agora dizer à Liga e aos clubes de futebol que puderam fazer testes com público que, apesar de todos eles – todos, sem exceção – terem corrido de forma exemplar, afinal o resultado será um chumbo e os espectadores não poderão voltar às bancadas no futuro mais próximo? Sobretudo se acabar por haver público no GP de Portugal de Moto GP, no mesmo circuito de Portimão, lá para finais do mês que vem.
Já se sabia que a preocupação com a saúde das nossas crianças e adolescentes não chegava para que as autoridades permitissem o regresso do desporto de formação, o que equivale a dizer que se condena toda uma geração a um presente de enorme frustração face à vontade de praticar desporto e competir e a um futuro com elevadas probabilidades de sedentarismo, obesidade e problemas cardiovasculares. Agora ficamos a saber também que a preocupação com a economia é válida para as duas divisões de topo do futebol, para os negócios associados a eventos como a Fórmula 1, mas não para os restantes escalões do pontapé na bola ou para as modalidades ditas amadoras. Mas já alguém parou para pensar qual é a percentagem dos futebolistas do Campeonato de Portugal ou até mesmo dos distritais cujo orçamento familiar depende da atividade enquanto jogadores de futebol? Ou alguém acha verdadeiramente que os andebolistas, os basquetebolistas, os hoquistas ou os jogadores de futsal das nossas equipas de topo são amadores? Que vão diariamente para o emprego num banco ou numa seguradora e depois fazem um treininho ao fim do dia, podendo da mesma forma andar a lutar por competições internacionais como têm feito, sem exceção, nos tempos mais recentes?
Parece-me evidente que um dos problemas que temos de enfrentar neste momento é a falta de compreensão do que se pretende. O sinal que os decisores estão a passar à população é tão incongruente como o que o treinador da anedota passava aos seus jogadores. E, no fim, o resultado não vai ser melhor. Não pode ser melhor.