Toda a anatomia de um erro
Makkelie não viu o golo de Ronaldo e pediu desculpa. O CR7 atirou a braçadeira ao chão e recuou ao valorizar a função. A FIFA e a UEFA não quiseram VAR no Mundial e continuam em silêncio.
No último minuto do Sérvia-Portugal, Cristiano Ronaldo marcou o que deveria ter sido o golo da vitória portuguesa (2-3), mas a equipa de arbitragem comandada pelo holandês Danny Makkelie não viu a bola bem dentro da baliza de Dmitrovic e não validou a jogada. Isso levou a uma reação enérgica do capitão português, que se recusou a participar ativamente nos segundos que restavam da partida e, assim que soou o apito final, foi embora, arremessando a braçadeira de capitão ao chão em sinal de desagrado. No final, Makkelie pediu desculpas Fernando Santos em privado e Ronaldo fez uma declaração pública a valorizar a braçadeira – mas sem pedir desculpas, de facto. Mas a UEFA e a FIFA, que estiveram na origem de tudo, ao optar por não ter VAR ou a simples tecnologia da linha de golo nos jogos do Mundial, continuam embrenhadas numa batalha de influência a chutar oficiosamente a culpa para um lado e para o outro. E os responsáveis não podem passar pelos intervalos da chuva.
Eu estava a comentar o jogo em direto na RTP1 e fiquei desde logo com a sensação de que a bola tinha entrado. Mas compreendo a posição da equipa de arbitragem. Aliás, é por causa de casos como este que há anos me bato pelo VAR, que o defendi antes da sua introdução e que nem sei bem o que dizer aos que são sempre contra tudo e que andam semanalmente a queixar-se do fim do romantismo do jogo, da abolição do direito ao erro e da eternidade que parecem os segundos de espera para o VAR validar uma decisão do árbitro de campo quando há um golo. O que se pede ao árbitro é o contrário disso. É que decida em frações de segundo, que diga logo ali, baseado na observação a mais de 30 metros – que é onde está o árbitro auxiliar – se a bola entrou ou não. E assim sendo temos de compreender o erro, por muito que ele nos custe, mais ainda se quem o cometeu pediu desculpa. “Está bem, mas isso não vai devolver-me os dois pontos que aqui ficam”, disse no final Fernando Santos. É verdade. E é por isso que este erro vai seguramente custar caro a Danny Makkelie e ao seu assistente – não os estou a ver a repetir a presença numa final europeia que protagonizaram na época passada.
Quanto a Ronaldo, já se sabe que tudo o que lhe diz respeito tem de ser excessivo. O jogo de ontem, que não lhe correu particularmente bem, estava a ser ainda assim melhor do que o de quarta-feira, com o Azerbaijão. Foi mais disciplinado taticamente, a sua ação não provocou desorganização na equipa, como em Turim e, mesmo tendo estado desinspirado, se as coisas tivessem corrido de acordo com a normalidade, ele teria saído de Belgrado como o herói da noite. Algo de que Ronaldo precisará como do ar que respira, tendo em conta a forma como lhe têm corrido os últimos meses na Juventus – e daí terá também nascido a frustração que o levou a fazer aquela birra inaceitável num profissional do seu gabarito. Um jogador como Ronaldo, que é capitão da sua equipa nacional, não pode pegar na braçadeira e mandá-la ao chão como se fosse um papel amarrotado. Imagino que quando o fez não estivesse a pensar nisso, que o que quer que ele tivesse à mão iria ao chão naquele momento, que ele não quis desrespeitar o símbolo de líder de uma equipa nacional, mas a ele pede-se-lhe que tenha um comportamento mais de acordo com a experiência que vai acumulando e que não deixe as frustrações comandarem-lhe as ações.
Alguém da vasta equipa de colaboradores deve ter lembrado Ronaldo disso, o que levou a uma quase imediata declaração nas redes sociais, feita quando Fernando Santos ainda estava na sala de imprensa a dizer aos jornalistas que não tinha visto o que sucedera. Na declaração, o jogador valorizou o papel de capitão da equipa, reiterou que para ele será sempre uma honra ser capitão de Portugal e, mesmo não chegando ao ponto de pedir desculpas – e isso não lhe ficaria mal, bem pelo contrário –, recuou face ao vasto exército de acusadores, que está sempre à espreita para o acusar, mesmo quando o que está em causa não é assim tão grave. Este ligeiro recuo permitirá a Fernando Santos dar-lhe a braçadeira outra vez na terça-feira, no Luxemburgo, sem perder face, mas não retirará a mancha reputacional do currículo do melhor jogador português de sempre. Será sempre também o homem que mandou a braçadeira e as suas obrigações como capitão àquela parte quando foi confrontado com uma decisão catastrófica da equipa de arbitragem e uma injustiça difícil de quantificar por parte da equipa de arbitragem. Mesmo tendo o caso sido uma clara montagem para o pôr a andar dali para fora, ainda hoje haverá quem recorde que, um dia, ao ser substituído, Jorge Costa mandou a braçadeira em direção de um colega. E isso foi o suficiente para justificar a saída do capitão a meio da época.
O que é lastimável é que a UEFA e a FIFA passem incólumes por isto tudo. Ontem, os jornais portugueses foram lestos a explicar que a FIFA dera à UEFA – e a todas as confederações continentais – a liberdade de ter ou não VAR e tecnologia de linha de golo na qualificação do Mundial. É possível que haja aqui algum excesso de zelo por parte das fontes – as portuguesas costumam ser bem mais alinhadas com Infantino do que com Çeferin – mas nada disso chega para inocentar uns e outros. O Mundial é a competição que mais dinheiro move no futebol mundial e não é admissível que siga em sentido inverso a tudo o resto na modalidade, muito menos por ser demasiado caro colocar no local os meios indispensáveis para termos VAR ou tecnologia de linha de golo em estádios ou países onde tais meios não são habituais. Porque muito mais caro será compensar uma seleção como Portugal ou os seus jogadores no caso de virem a ser afastados de uma fase final devido a um erro como este.
Estou convencido de que tal não vai suceder. Mas se assim for este será o Mundial da mentira. Não como o de 2010, onde esteve a França e não esteve a Rep. Irlanda devido a um golo de Gallas antecedido de uma clara mão na bola de Thierry Henry. Nessa altura não havia VAR. Hoje há – e foi recusado.