Táticas: uma lição de história
Se querem mesmo saber quem inventou quase tudo o que se faz hoje no futebol, vejam o Mundial'74 e a forma como Alemanha e Holanda "vestiram" os três defesas. Aqui fica uma breve explicação.
No primeiro confinamento, faz agora um ano, dei comigo a ver os jogos do Mundial’74, fruto do meu fascínio pelo cocktail político e social que foram os anos 70 e da vontade de conhecer melhor equipas e jogadores que marcaram a história do jogo, como Cruijff ou Beckenbauer. O que vi, a mais de 40 anos de distância, permitiu-me relativizar uma série de certezas cuja busca ainda hoje preocupa muita gente, incluindo alguns treinadores de futebol. Uma delas, que serviu para uma acesa polémica nas redes sociais a propósito do Último Passe de ontem, é que há muito tempo ninguém inventa sistemas táticos. Mais: o sistema é a base de tudo, mas o verdadeiro segredo do sucesso está na adaptação dos jogadores às pequenas nuances que a sua interpretação pede.
Por exemplo, a Alemanha Federal foi campeã mundial a jogar uma coisa próxima do WM, que em certas alturas se aproximava do 4x3x3 e noutras no agora tão em voga 3x4x3. Porquê? Porque os posicionamentos dependiam muito do adversário. Na base, era 4x3x3, mas os laterais portavam-se de forma diferente, o que logo aí aproximava o sistema de um com três defesas-centrais, sobretudo se o adversário jogasse em 4x4x2: Vogts, partia da direita, mas marcava individualmente o avançado mais móvel do rival, o que por vezes o fazia jogar… à esquerda; Breitner, que era lateral esquerdo, surgia como segundo médio, auxiliando o médio-centro (Cullman) e o líbero (Beckenbauer) em tarefas de organização ofensiva. Na frente, os extremos (Grabwoski e Heynckes) não assumiam o papel dos alas atuais no sistema de três centrais, porque não se lhes exigia tanto do ponto de vista defensivo, mas os dois médios ofensivos (Höness e Overath) já eram um protótipo do que são hoje os avançados-interiores num 3x4x3.
Portanto, esqueçam lá a polémica em torno de quem inventou o 3x4x3. Se os três centrais já vêm de Rappan, Rocco ou Herrera. Nem isso interessa nada para o tema – e se ontem falei do 3x4x3 de Amorim foi porque o treinador do Sporting o usa sempre e falou durante o fim-de-semana dos seus méritos e lacunas – nem o fundamental é eles lá estarem. Para falar apenas dos grandes de Portugal, já vi muitas formas de jogar com três atrás, desde o Benfica de Eriksson (com Shéu a fazer de quarto-defesa em jogos contra adversários mais débeis) ao FC Porto de Adriaanse (que jogava sempre assim, fosse quem fosse o adversário, com Paulo Assunção no híbrido defesa-médio), com passagem pelo Sporting de Toshack (o 3x5x2 mais clássico, com líbero e dois centrais e laterais ofensivos). Nos comportamentos, todas estas equipas jogavam de forma diferente.
A Holanda, cuja escola muita gente associa ao nascimento dos três defesas, até jogava com quatro: Suurbier, Rijsbergen, Haan e Krol. Mas mexia neles de forma diferente. Em posse, Suurbier, o lateral direito, fazia de extremo, permitindo que Rep, o extremo-direito, funcionasse como ponta-de-lança, porque o ponta-de-lança inciial, Cruijff, baixava para 10. Rijsbergen era central, mas em posse caía na direita, compensando a ausência de Suurbier e fazendo com que a Holanda se aproximasse dos três defesas. E Krol, o defesa-esquerdo, saía em diagonais frequentes para o centro do terreno, aparecendo como mais um médio. Era aquilo a que a história chamou “futebol-total”, contra a vontade do criador, que foi Rinus Michels. Porque os posicionamentos de base eram ainda menos importantes do que o princípio de jogo: mobilidade, compensação e, sobretudo, pressing alto, muitas vezes em dois contra um, o portador da bola, levando à recuperação frequente bem dentro do meio-campo adversário e ao jogo de transição ofensiva.
Foi a invenção da zona-pressing? Foi, pelo menos, a sua adaptação ao futebol, porque a ideia já vinha de outras modalidades. Por essa altura, Niels Liedholm já escandalizava Itália com a troca da marcação homem-a-homem pela zonal nas equipas que dirigia. Atenção, que isto aconteceu nos anos 70 e, para verem como a questão das marcações e dos comportamentos defensivos ficaram enraizadas nos profissionais, em 1992, no primeiro grande campeonato que cobri no local (o Europeu da Suécia), ainda havia jornalistas italianos a desconstruir as equipas de acordo com as marcações individuais: quem está a marcar quem? Isso já sucedeu no pós-Arrigo Sacchi, que construíra em pressing zonal o Milan da segunda metade dos anos 80, ainda hoje uma referência para esta ideia de jogo. E alguém quer saber em que sistema esse Milan jogava? Jogava em 4x4x2 e não vou dizer que isso não era relevante – porque as posições de base são a forma de os jogadores potenciarem a solidariedade em campo e os coletivos devem ser trabalhados a partir desse ponto de partida, para jogarem de olhos fechados. Mas a equipa funcionaria bem da mesma forma se Sacchi a tivesse trabalhado no 4x3x3 da Holanda de Michels ou no 3x4x3 do Ajax de Cruijff.
O sistema tático é a roupa que você veste para ir correr. Se for de fato de gravata, isso começa por parecer estranho, mas é possível que ao fim de umas semanas de habituação se sinta bem assim e até que acabe por estranhar se um dia sair de casa de calções e t-Shirt. Mas o que importa mesmo são os princípios: é o percurso, a cadência. Assim sucede com as equipas de futebol. Amanhã voltarei ao tema com a aplicação dos ensinamentos que o Mundial de 1974 – creio que foi o último verdadeiramente rico em termos táticos – nos deixou às equipas de topo do futebol português.