Sorte à sueca
Podemos tentar convencer-nos de que para ganhar à sueca basta ter a sorte de nos saírem os ases e as manilhas ou de que ganhar com o avançado sueco é ter a fortuna de ele ter aqui caído do céu. Não é.
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Uma das formas mais habituais de desmerecer a liderança do Sporting, ainda por cima enfatizada pela maneira como a equipa de Rúben Amorim conseguiu um empate no Dragão, com dois golos num minuto do seu avançado sueco depois de ter mostrado incapacidades várias enquanto ele não esteve em campo, é dizer: “se não tivessem o Gyökeres não tinham hipótese”. Ora esta é duplamente uma falsa questão. E é-o, primeiro, porque o Sporting tem Gyökeres, identificou-o, investiu nele e convenceu-o a vir para Lisboa. E depois porque se o não o tivesse teria outro jogador, que ninguém sabe quem seria, e teria trabalhado outros processos, que lhe permitiriam jogar de uma maneira diferente e não habituada à presença desarmante do melhor marcador e jogador mais influente da Liga. Gyökeres foi fundamental na caminhada do Sporting até aqui? Foi. Sem ele o Sporting não seria líder? Já não sou capaz de o dizer.
A mim, estarrece-me sempre a forma como os adeptos do futebol juntam a certeza absoluta e o uso do condicional. “Se fosse com o [inserir nome do jogador da equipa deles], o árbitro dava vermelho pela certa” é uma das frases mais ouvidas por aí e que uma vez até levou Paulo Bento a usar o inspirado “se a minha avó tivesse rodas era um camião”, numa conferência de imprensa. O contra-factual é divertido mas profundamente especulativo e, por isso, subjetivo. Sem Gyökeres o Sporting não seria nunca campeão? Não sei. Talvez sim, talvez não. O Sporting foi campeão em 2021 e não só não tinha Gyökeres como durante metade dessa época nem sequer tinha Paulinho e jogava com Pedro Gonçalves, Tiago Tomás e Nuno Santos à frente. A Suécia tem Gyökeres e não se apurou para a fase final do Europeu de 2024, uma fase final em que estarão 24 seleções e da qual os suecos foram eliminados pela Bélgica e pela Áustria. Não têm mais ninguém? A equipa é fraca? Não é verdade: é a seleção de Isak, Kulusevski, Hien, Svanberg, Lindelof ou Robin Olsen. O Coventry City teve Gyökeres durante dois anos e não subiu de divisão no Championship, somando um 12º e um quinto lugar com desaire na final do play-off de acesso à Premier League.
A contratação de Gyökeres por parte do Sporting, no Championship inglês, não foi uma sorte – foi uma descoberta. E a operacionalização da equipa em função das suas caraterísticas por Rúben Amorim também não é uma sorte – foi encaixe perfeito de uma ideia na forma de jogar da que ele tornou a arma mais letal deste campeonato. Ganhar com o sueco é um pouco como ganhar a jogar sueca: convém ter as cartas na mão – e aí, sim, uma boa mão até é uma questão de sorte –, mas depois é preciso saber o que fazer com os ases e as manilhas, se se destrunfa ou não, se se joga as cartas mais altas ou as mais baixas... O Sporting ressente-se da falta de Gyökeres quando, como aconteceu no Dragão, ele não está? É verdade. Mas ressente-se por ter passado toda a época a trabalhar, a aperfeiçoar processos de maneira a explorar aquilo que o sueco lhe dá. O que se viu no Dragão foi uma equipa do Sporting que parecia um peixe fora de água, não só por não ter Gyökeres, mas também por lhe faltar a fluidez à esquerda de Nuno Santos (ou Matheus Reis) e, antes disso tudo, a qualidade de construção atrás de Inácio, cujo pé esquerdo fez muita falta na saída de bola. Explicar a exibição paupérrima do Sporting na primeira parte do Dragão apenas com a ausência de Gyökeres é profundamente redutor. Transportar o que se viu naqueles 45 minutos para nove meses sem o sueco é mais do que isso: já é mesmo desonesto.
Se há erro que pode ser apontado a Amorim é a renitência que ele teve na contratação de um avançado com o perfil de Gyökeres – da mesma forma que se ele ficar no Sporting e insistir em não querer um guarda-redes poderá vir a arrepender-se no futuro. Os primeiros passos do treinador no Sporting fizeram-se com Sporar, que já lá estava quando ele chegou mas que não lhe enchia as medidas – e por isso teve de se fazer à vida à primeira oportunidade. O ponta-de-lança esloveno é sobretudo finalizador, jogador de área, sem grandes argumentos na ligação, nas desmarcações de apoio, não muito agressivo nos ataques à profundidade, mas com faro de golo. Amorim queria um jogador que finalizasse mas ao mesmo tempo pudesse ligar a equipa entre linhas. Por isso insistiu em Paulinho, que chegou a meio da época do título e foi tão caro: para o treinador era aquele ou nenhum outro. Trabalhou a equipa para ele e, já depois de ser campeão, acentuou essa forma de jogar, apostando na frente de ataque mais móvel da sua passagem por Alvalade, na qual até Sarabia ou Jovane chegaram a jogar ao meio do seu 3x4x3. Quando o espanhol voltou à base, a prioridade do treinador no mercado nunca foi o avançado-centro que ele, de facto, não era. O Sporting investiu em Edwards, em Trincão, até em Arthur Gomes ou Rochinha, prova de que Amorim procurava sobretudo gente capaz de desequilibrar em um-contra-um. Como Paulinho era curto para toda a época e, dos outros, ninguém se atrevia a jogar ao meio, apareceu Chermiti, avançado mais forte, mais dado às correrias para o espaço atras da última linha dos adversários. Talvez tenha sido aí que Amorim acordou para esse perfil e se decidiu a fazer o upgrade que levou à contratação de Gyökeres no Verão passado.
A influência do sueco vai muito para lá das suas caraterísticas individuais. Todos reparam no seu futebol incansável, na forma como ataca o espaço vezes sem conta, como resiste às cargas, como sai bem do drible em diagonal da faixa para o meio quando está em um-para-um e a aceleração que ele imprimiu ao jogo dificulta a chegada das coberturas, mas a força do jogo do Sporting não se esgota aí, tem de ser vista de forma integrada. “Então porque é que não se viu no Dragão enquanto ele não entrou?”, perguntam vocês. Porque até o jogo entrelinhas de Pedro Gonçalves ou Trincão ganha com os esticões que o sueco dá ao futebol da equipa, aumentando-lhes o espaço de manobra. “Então, lá está: sem Gyökeres não haveria Sporting na frente”, concluem. E esse é o passo que eu já não sou capaz de dar. Porque sem Gyökeres iria jogar outro avançado e ninguém sabe o que ele daria. Seria Paulinho? É possível. Mas se fosse Amorim teria passado nove meses a trabalhar uma forma diferente de jogar e não esta, em que a equipa acabou por se viciar. Se há coisa que as épocas do Sporting e da seleção sueca nos dizem e que o jogo do Dragão nos grita é que as equipas jogam como treinam. E que quanto maior é a influência de um jogador, mais se sentirá a sua falta. A não ser que ele nunca lá tenha estado. O Benfica do ano passado foi campeão sem Gyökeres, mas demorou a saber jogar sem Enzo. O FC Porto de 2022 foi campeão sem Gyökeres, mas demorou a adaptar-se à perda de Luis Díaz. O Sporting de 2021 foi campeão sem Gyökeres, mas jogava de maneira muito diferente do de 2023/24.
Era isto que eu dizia de o plantel do Sporting não ser curto, nem desequilibrado. Ainda acho que falta um avançado mais, para ter dois jogadores por posição, mas qualquer um pode ser substituído sem grande perda de qualidade, mesmo que diferente. O Porto e o Sporting de Jardel também tiveram de aprender a jogar sem ele quando foi necessário, o Sporting não tinha Liedson no épico 4-1 ao Newcastle e podia continuar.