Seleção sem Ronaldo e o “novo normal”
A nossa adaptabilidade ao "novo normal" é abalada por casos que mexem com a consciência coletiva. Como pode jogar a seleção sem Ronaldo? Porque deve jogar. Disso não tenho dúvidas.
Quando Ronaldo falhou o jogo frente à Croácia, que no mês passado abriu a participação portuguesa nesta Liga das Nações, por causa de uma infeção num dedo do pé direito, a ausência não preocupou tanto como a de agora, que sabemos que o capitão da seleção não poderá estar em campo com a Suécia, por ter testado positivo à Covid19. Por várias razões. Primeiro, não havia certezas de véspera: um dia antes do jogo, Fernando Santos dizia que tinha “algumas dúvidas”, mas não afastava a hipótese de ele recuperar. Depois, conheciam-se perfeitamente os contornos da sua eventual baixa, não havendo mais implicados, ao passo que o elevado grau de desconhecimento acerca desta doença traz para a ribalta da acusadora consciência coletiva a selfie do jantar de grupo, o abraço a Mbappé, a camisola trocada com Camavinga, que o jovem francês disse que nem ia lavar… Tal como o resto da sociedade, o futebol precisa de aceitar o risco, mas não deve exponenciá-lo.
Todos nos lembramos dos primeiros jogos após a retoma, lá para Maio. Não havia sequer abraços após os golos, festejados com o asséptico toque de cotovelo. Tudo aquilo parecia de outro planeta. A questão é que o ser humano é por natureza adaptável e, da mesma forma que a maioria de nós já não desinfeta as mãos sempre que toca numa maçaneta de uma porta – e na primeira vaga da pandemia fazíamo-lo de forma quase obsessiva –, também os futebolistas profissionais se foram adaptando a esta nova realidade. Por alguma razão lhe chamaram “o novo normal”. É por tendermos a normalizar tudo – é essa a única forma de viver mentalmente são – e por saber dos laços fortes que se criam numa equipa que não sou capaz de condenar aquele jantar coletivo da seleção nacional. E se concordo que a selfie (ou pelo menos a sua divulgação em contas de redes sociais com milhões de seguidores) devia ter sido evitada, é por uma questão de exemplo e não de minimização de risco. Bastante mais irresponsável do que quando se sentou à cabeceira de uma mesa com todos os colegas de equipa tinha sido Ronaldo quando foi apanhado na bancada do Dragão sem máscara, a ver o jogo com a Croácia. E nessa altura toda a gente sorriu, colocando o foco na diligente funcionária que foi alertá-lo e dizer-lhe que tinha de se proteger a ele e aos outros.
Curioso é que a preocupação com a propagação da Covid19 tenha retirado da atualidade o tema-futebol. Logo ontem, quando começaram a circular opiniões no sentido de o jogo ter de ser suspenso e todos os jogadores da seleção terem de ser colocados em isolamento, me pareceu que isso seria, no mínimo, incoerente. Pois se não aconteceu quando Anthony Lopes testou positivo depois de ter passado um par de dias a treinar com a equipa, por que razão haveria de suceder agora, quando o bicho apontou a Ronaldo? O capitão faz as manchetes que o guarda-redes não fez, mas não por ser um foco de contágio de potencial mais elevado. É por ter mais peso na manobra coletiva. E disso ninguém quer saber. Porque, no fundo, as implicações coletivas da ausência de Ronaldo são a única coisa que todos sabemos de ciência certa neste tema.
Fernando Santos diz que sem Ronaldo “mudam as dinâmicas, mas não o plano” e, tal como expliquei várias vezes, a última das quais aqui, o jogo da seleção até é mais fácil de interpretar sem o elemento de imprevisibilidade que os comportamentos do capitão lhe trazem, tanto ofensiva como sobretudo defensivamente. Seja com Félix ao meio e Jota na esquerda, como sucedeu contra a Croácia, ou com a introdução de um ponta-de-lança mais clássico, como é o caso de André Silva, implicando o desvio de Félix para a faixa lateral e de Jota para o banco, o jogo de Portugal vai tornar-se mais fácil de interpretar. Pelos nossos jogadores mas, atenção, também pelos adversários. Uma semana de treinos e dois jogos já terão servido ao selecionador para ter dados suficientes para decidir uma equação que em condições normais seria simples: se a fórmula apresentada frente à Croácia permitiu que a equipa, ainda assim, fosse menos previsível no seu 4x3x3 – as trocas posicionais funcionaram muito bem nessa noite – por que razão não pensaria Santos replicá-la na ocasião seguinte em que não pode contar com Ronaldo? Pois é aí que entra o contexto, no caso o facto de a equipa ir para o terceiro jogo em oito dias. Porque Ronaldo pode ser o único infetado com Covid19, mas seguramente que o plantel terá outros jogadores que ao fim desta mini-maratona já não estarão tão frescos como o plano de jogo exigiria. E isso também é o novo normal.