Seleção entre as táticas e o talento
Contra a França e a Croácia, Santos podia começar com Bruno Fernandes, Bernardo Silva, Félix, Ronaldo e Jota? Podia. Mas não o fará. Um deles vai saltar. É que Portugal ainda não é dono disto tudo.
A seleção nacional joga esta noite com Andorra (19h45, RTP1) uma partida que até Fernando Santos vê um pouco como empecilho aos seus planos, que são a preparação o mais tranquila possível do jogo que conta, que é aquele que vai disputar com a França, no sábado. Aí, sim, começará – e pode até acabar – a definir-se quem vai estar na Final Four da Liga das Nações, ainda que nem nessa noite se resolva de forma definitiva uma questão a que o selecionador aludiu na conferência de imprensa de ontem: a do estatuto desta equipa. Há um par de dias, em conversa, um jornalista francês perguntou-me se eu achava que Portugal está “entre as três ou quatro melhores seleções do Mundo”. Ontem, sem sequer saber da pergunta, Santos respondeu-lhe, quando afirmou que “Portugal já não é um outsider”. A mim, no entanto, continua a faltar-me algo. E isso estará bem à vista, por exemplo, na forma como ele vai resolver a escolha do onze para a “final” de sábado, quando tiver de optar entre a organização tática e o talento.
Entre os portugueses que gostam de ver sempre o copo meio vazio, por oposição à hipótese de o verem meio cheio, muitos há que dizem que Portugal pensa pequenino em termos de futebol e responsabilizam o selecionador. O problema, alegam, são “as táticas” de Santos. O tal jornalista francês também me perguntou algo parecido. Se era uma questão de “falta de ambição”. Não creio. Nem em 2014, quando este selecionador pegou numa equipa que vinha de um Mundial fracassado e de uma derrota em casa com a Albânia e teve logo a França, em Paris, como batismo de fogo, havia “falta de ambição”. A ideia desta equipa tem sido sempre a mesma: ganhar. A forma de lá chegar é que pode nem sempre ter sido a mais sedutora e a que as pessoas mais gostam de ver. Mas isso não quer dizer que não tenha sido inteligente e pragmática. E aqui, por mais que isso custe a muita gente, que se queixa de se andar sempre a falar do mesmo, a coisa vai dar a Cristiano Ronaldo. Pois se o selecionador tem um dos dois – nem vou aqui discutir hierarquias entre o CR7 e Messi – melhores jogadores do Mundo, vai ignorá-lo na forma de montar a equipa? Se tem no grupo o melhor jogador do Mundo em ataque rápido e contra-ataque, vai montar uma equipa para jogar em ataque organizado, com um futebol mais bonito, de posse?
A equipa nacional dos últimos 16 anos fica absolutamente marcada pelo legado de Ronaldo. Mas Ronaldo, como Futre antes dele, surgiu entre gerações. Futre era demasiado novo para jogar de forma consolidada com Oliveira, Chalana, Jordão ou Humberto e já foi demasiado velho para aproveitar verdadeiramente a geração de Figo, Rui Costa, Baía, João Pinto ou Paulo Sousa. Da mesma forma, Ronaldo era ainda um menino quando estes craques da chamada “geração de ouro” estavam no auge e está a entrar na ponta final da carreira quando surge a nova geração de estrelas, de que Bernardo Silva, Bruno Fernandes, João Félix, Rúben Dias ou Diogo Jota serão os expoentes. Foi muito à conta de Ronaldo que a equipa se aguentou lá em cima durante boa parte da década que mediou entre a meia-final do Mundial’2006 e a vitória no Europeu’2016. Para voltar ao tema, “as táticas” de Santos nunca foram pouco ambiciosas: foram as que levaram a equipa à vitória no Europeu de 2016 e na Liga das Nações de 2019. Foi a jogar mais para não perder do que para ganhar? Admito que possa ficar essa ideia, mas a estratégia parte sempre do princípio de que, com jogadores como Ronaldo, uma equipa que esteja segura atrás acaba sempre por ter um par de oportunidades para ganhar os jogos. E não alinho nada no modismo que em breve vai começar a ganhar adeptos, segundo o qual a presença do CR7 prejudica a ambição da equipa. Ainda que admita que, nesta fase da carreira dele e do crescimento do futebol nacional, as coisas possam mudar – e isso vai ser testado já nos próximos dois jogos a sério.
Portugal vai ter pela frente os dois finalistas do último Mundial: a França e a Croácia. São jogos de alto padrão de exigência. E, para jogar nas posições de criação, Santos tem cinco jogadores cujo momento e cuja qualidade os torna incontornáveis: Bruno Fernandes é líder e referência do Manchester United a partir da zona de meio-campo; João Félix está a jogar enormidades e a influenciar todo o jogo ofensivo do Atlético Madrid; Diogo Jota impôs-se de forma que ninguém esperaria com golos sobre golos no Liverpool FC; Cristiano Ronaldo ainda é o melhor finalizador do Mundo e continua a marcar todo o futebol da Juventus; e Bernardo Silva é um portento de técnica, o único de todos eles que pensa o jogo de forma mais coletiva do que individual e que por isso se torna imprescindível à gestão de ritmos da equipa. Ora, até deixando de fora da equação Renato Sanches, provavelmente o melhor jogador da Liga Francesa nas últimas semanas, o 4x3x3 de Fernando Santos só tem quatro vagas para os cinco jogadores.
Colocado perante um dilema semelhante, quando visitou o Manchester City, no passado fim-de-semana, o treinador do Liverpool FC, Jürgen Klopp, abdicou de um médio para poder jogar ao mesmo tempo com Salah, Jota, Mané e Firmino. Podia Santos fazer o mesmo e jogar com todos? Escolher um entre Danilo ou William, baixar Bernardo para o meio-campo, ao lado de Bruno Fernandes, e soltar Jota, Félix e Ronaldo na frente? Podia, claro. Satisfaria todos os que culpam “as táticas” pela limitação de potencial da equipa nacional. Agora se me perguntam se isso seria inteligente ou se deixaria a equipa mais perto de ganhar, já creio que não. É que Portugal até pode ter deixado de ser outsider – e não estou nada convencido disso, porque nos falta a profundidade de plantel de outras seleções em todas as posições – mas ainda não é o dono disto tudo.