Sarri e a Juventus: "Agora sem mãos!"
Como se avalia um treinador de uma equipa que ganha sempre? Pontos? Vantagem? Rendimento das vedetas? Nota artística? Aqui ficam algumas pistas para entender o que faz Sarri na Juventus.
Como se faz a avaliação de um treinador que comanda uma equipa que ganha sempre? A ideia passou-me pela cabeça ao ler as palavras de Maurizio Sarri, proferidas ontem, véspera do jogo que pode dar à Juventus o nono scudetto consecutivo. Ganhando hoje ao final da tarde em Udine, a vecchia signora celebrará o nono scudetto consecutivo; empatando ou perdendo, acabará por fazê-lo na mesma porque os seis e sete pontos que tem de avanço sobre a Atalanta e o Inter – aos quais já só faltam três jogos – não vão eclipsar-se. Quando lhe perguntaram por que razão o criticam tanto, Sarri não teve papas na língua: “Provavelmente estarei a pisar-vos os tomates”.
“O que vocês exprimem são opiniões, seguramente legítimas, mas que para mim só têm um interesse relativo. Deixem-me ser presunçoso. De futebol, acho que sei mais do que vocês. Tenho à disposição dados para poder saber mais”, disse ainda Sarri. As diferenças entre Itália e Portugal começam no facto de os jornalistas – mais bem vestidos? – não serem suspeitos de se venderem por um jantar. Aparentemente, na ideia de Sarri, personagem genuíno vindo das profundezas da caverna do futebol italiano, são só embirrantes e um pouco teimosos. Essas diferenças acabam um pouco mais à frente, porque em Turim falamos de críticas a um técnico que vai ganhar. Mas também falamos de uma equipa que já ganhava antes dele, permitindo que se desviem grande parte dos méritos para o grupo de jogadores ímpar ou para quem mais contribuiu para o construir, como por exemplo Giuseppe Marotta, que neste momento já empresta os seus talentos ao Inter na tentativa de acabar com a hegemonia da Juventus.
Ao comando da Juventus, Sarri já parece aquele miúdo que, para impressionar os pais ou os amigos, em mais uma volta ao quintal de bicicleta larga o guiador e grita: “Agora sem mãos!” O que me devolve à pergunta inicial. Como se avalia um treinador de uma equipa que ganha sempre?
É pelos pontos? A Juventus de Sarri ainda pode chegar aos 92 – embora me pareça que, atrapalhada pela diminuição da pressão e pelo foco entretanto virado para a Champions, dificilmente superará a barreira dos 90 somados na época passada pela equipa de Allegri. Há dois anos, Allegri conduziu-a aos 95. Há três e há quatro acabou com 91. Mas em 2015, no seu primeiro ano aos comandos, o treinador de Livorno acabou com 85 pontos e nem por isso foi contestado, abrindo ali caminho para um passeio que teve cinco voltas de mãos firmes no guiador.
Será, então, pelo avanço face ao segundo colocado? É verdade que em 2018/19 a Juventus acabou com mais onze pontos que o SSC Nápoles de Ancelotti, mas em 2017/18 a diferença frente aos napolitanos – então conduzidos, exatamente, por Sarri – já foi de apenas quatro pontos, provavelmente inferior à que vai acabar por se verificar após a 38ª jornada da Série A deste ano.
Outra hipótese: será pelo rendimento dos jogadores-bandeira, aqueles a quem os adeptos e até os jornalistas prestam mais atenção? Então aí Ronaldo está a dar uma ajuda ao treinador com o qual já se disse que nem vai muito à bola. Jogou de início em todos os jogos desde a retoma – e foi o único além de Bettancur a fazê-lo – e, neste momento com os mesmos 30 golos do avançado laziale Ciro Immobile, o português pode ser o primeiro jogador da Juventus a sagrar-se melhor marcador da Série A desde que Del Piero o conseguiu em 2008. E persegue ainda mais dois recordes. O de melhor marcador da história da Juventus num só campeonato (Felice Borel fez 32 golos em 1933/34) e o de melhor goleador da história da Série A, que foi o argentino Higuaín, em 2015/16, quando marcou por 36 vezes a jogar no SSC Nápoles de… Maurizio Sarri.
Será então a avaliação popular puramente subjetiva e dependente do contexto? Creio que sim e que é isso que a distingue da avaliação profissional. Olhando para o campeonato de Itália numa perspetiva mais diletantística, porque não tenho ali o mesmo nível de exigência que tenho quando observo o futebol português, também eu tive sempre boa impressão de Sarri, porque gostava do futebol do SSC Nápoles que ele transformou durante alguns anos no maior rival da Juventus – é verdade que o facto de chegar depois de Benítez também terá ajudado nesta perceção. Sarri, a par de Allegri, que tornara mais sexy a Juventus de Conte, continuando a ganhar, era para mim um dos responsáveis pelo aumento do interesse e da beleza estética do futebol italiano nos últimos anos. Mas também eu cheguei a meio desta época com a ideia de que, afinal, Sarri não tinha unhas para conduzir aquele Ferrari. Lá está: a perspetiva não profissional depende muito do contexto.
No fundo, o que está mal ali nem é Sarri. É a Juventus. Ninguém pode manter a sanidade mental num campeonato que é ganho nove vezes seguidas pela mesma equipa. Nem sequer os adeptos da Juventus, que já nem devem festejar em condições.