São só pessoas
António Oliveira deu uma lição ao auditor Dobranski, mas podia estendê-la a todos os que andam por aí entretidos num e no outro lado da barricada xenófoba. São só pessoas, senhores.
O auditor Rubens Dobranski, que é ali dos Dobranski de Iguaçu, sangue índio a correr-lhe nas veias – apesar do apelido vagamente polaco... – acha que os treinadores portugueses “estão a marcar território” no Brasil e confrontou com essa ideia António Oliveira, numa sessão de julgamento a propósito dos incidentes no final do jogo entre o Coritiba, liderado pelo filho de Toni, e o Athletico Paranaense, que ele também já comandou. O magistrado até “chamou à conversa” Abel Ferreira, o treinador do Palmeiras, que “chuta baldes de água e microfones”, para alegar nem se sabe bem o quê – que no vídeo que circula por aí nem chegou a concretizar nada, além de considerar que António Oliveira era “muito reclamão”, porque viu três cartões amarelos “em quatro ou cinco rodadas”. Dobranski já foi afastado – haja decência... – e alvo até de um comunicado de repúdio dos dois clubes desavindos, mas para tal não precisou de chegar ao ridículo de Neto, o palhaço de serviço nos programas de comentário pimba, que os há também no Brasil. Quando quis ganhar engajamento junto da imensa torcida rubro-negra, naturalmente irada com os maus resultados, o ex-internacional resolveu capitalizar em cima do mau momento do Flamengo de Vítor Pereira e da conduta menos própria do treinador na saída do Corinthians. Como Pereira justificou a não renovação de contrato com o “Timão” com os problemas de saúde da sogra, que o forçariam a voltar a Portugal, mas depois assinou pelo Flamengo, Neto apareceu a usar uma espécie de hijabe islâmico em padrão tigresa – e nunca vi uma sogra assim vestida, muito menos portuguesa. Voltando ao Paraná, a resposta de Oliveira a Dobranski é um manual. “Não olho a nacionalidades, não olho a cores, não olho a religiões. Para mim, cada pessoa tem a sua índole, educação e formação”, disse o treinador português, que naturalmente não sabia que ia ser ouvido em audiência só para dar uma lição a quem lá estava. No fundo, quem está no banco são só pessoas e as tentativas de as agrupar de acordo com a origem são ridículas, porque as pessoas reagem de acordo com os contextos, venham elas de onde vierem. Estaremos nós em Portugal a formar uma geração de “técnicos reclamões”, como sugeriu aquele magistrado? Há, mesmo por cá, quem ache que sim. José Mourinho está no olho do furacão em Itália, por se ter excedido na resposta a provocações de um quarto árbitro. Sérgio Conceição é freguês habitual dos árbitros na Liga, mas controla-se mais nos jogos da Liga dos Campeões. Será porque o contexto é diferente? Roger Schmidt já saiu do relvado de Vizela, depois de ter sido expulso, a exibir para o público que o invetivava e que o atingira com uma garrafa de água o resultado (2-0), fazendo lembrar os três dedos de Jorge Jesus na cara de Sherwood num Tottenham-Benfica. O treinador do Benfica, que é ali dos Schmidt da Buraca, sangue lusitano que se lhe vê nas bochechas sempre rosadas quando está no banco – apesar do apelido vagamente alemão... –, também já cedeu ao contexto. E ainda que dê um jeitão, sobretudo num determinado espectro político, categorizar as pessoas de acordo com “nacionalidades, cores ou religiões” – os portugueses são “reclamões”, os brasileiros são mandriões, os alemães são rigorosos, os italianos são excessivos... – quem está ali, lembremo-nos sempre, são só pessoas.
O clássico que não se viu. Ontem, houve Real Madrid-FC Barcelona, a contar para a Taça do Rei. O jogo não foi transmitido por nenhum canal de televisão português, o que é mais do que estranho – é lamentável – mas, como escrevia no Twitter o João Gonçalves, ontem a IPTV não era crime. O jogo foi muito estranho. A começar pela forma como foi resolvido a favor do FC Barcelona, com um autogolo de Militão, a seguir a um mau passe de Camavinga, que Ferrán Torres intercetou e aproveitou para lançar Kessié em direção à baliza madridista. Courtois defendeu, mas o brasileiro, que vinha em corrida desesperada de recuperação, meteu a bola nas redes. Depois, porque quem esteve mais perto de outro golo até foram os catalães, tendo Ansu Fati salvo inadvertidamente quase na linha um remate do seu colega Kessié, já com o guarda-redes belga batido, privando assim o marfinense do bis. Ronald Araujo meteu Vini Júnior no bolso e o Barça nem quis jogar muito: limitou-se a impedir que o Real jogasse. O resultado desta particularidade foi o mais estranho de tudo: pela primeira vez desde a Supertaça de 2017, quem teve mais bola no clássico foi a equipa da capital. O Real acabou com 65 por cento de posse de bola, mas poucas vezes soube o que lhe fazer, acabando sem nenhum remate enquadrado entre os postes à guarda de Ter Stegen. É cedo para se tirarem conclusões, que há segunda mão daqui por um mês, mas este Barça está a conseguir fazer coisas que tradicionalmente não sabia. Jogar sem a bola, por exemplo. E isso, desde que não seja filosofia, é um bom sinal de crescimento. Não é, como escrevia Manuel Jabois no El Pais de hoje, a transformação da “ditadura do 10 argentino em todo o campo”, na “ditadura do 4 uruguaio na defesa”. É o acrescento de mais um argumento a uma equipa que prossegue o seu crescimento.
A justiça que não anda. Lembram-se da conversa que deu origem à primeira entrada destas Conversas de Bancada? Eu dou uma ajuda: os portugueses são “reclamões”, os brasileiros são mandriões e assim sucessivamente. Outra coisa que ouvimos muito acerca dos portugueses é que a nossa justiça não funciona. “Isto só neste país”, diz que nunca se preocupou em ver como (não) funcionam os outros. Por cá, é verdade, gastamos horas e mais horas de televisão a discutir a implicação desportiva de casos com nomes criativos, como o Mala Ciao, o Apito Dourado, o Cashball, o Saco Azul, os Vouchers, o Cartão Vermelho ou outros que tais, nem que seja só para nos indignamos por no fim as montanhas parirem ratinhos do tamanho dos hamsters que fazem andar incessantemente as rodas das jaulinhas em que estão entretidos. Em Espanha, a queixa apresentada em tribunal por Xavier Estrada Fernández, VAR da Liga, a propósito dos factos imputados ao FC Barcelona e ao ex-presidente dos árbitros, José Maria Enriquez Negreira – a quem o Barça pagou reiteradamente milhões, com fatura e tudo, por alegados serviços de assessoria – teve como consequência que a “fiscalía” é agora obrigada a parar as investigações. Aqui, já não são as pessoas. São as leis – que foram feitas por pessoas. E há duas formas de lidar com isto. Uma é a de entender a realidade, alargando ao estado de direito que nos rege e nos defende a todos a reflexão uma vez feita por Winston Churchill acerca da democracia – “é a pior forma de governo à exceção de todas as outras”. A outra é a de nos rirmos de nós próprios, voltando a ver a obra prima que é “Yes, Minister”. Eu gosto das duas.
O Luis Castro a semana passada no final do jogo contra o Flamengo também deu uma lição de civismo aos brasileiros.
Aconselho todos a verem o vídeo.
Isto após a entrada da polícia de choque no campo no final do jogo.
Sem papás na língua!