Saber ao que se joga
A Escócia não tem craques, mas ao contrário do que acontecia quando os tinha, sabe ao que joga. A Espanha está cheia de estrelas e no meio de uma crise de identidade que já se previa.
Ontem, a propósito do Escócia-Espanha, fui confrontado com o tempo em que os futebolistas não tinham as dentaduras sempre perfeitamente alinhadas e imaculadamente brancas que o dinheiro entretanto lhes comprou. Um jornal espanhol – e já não sei qual – lançou uma thread no Twitter com os jogadores mais importantes da história do futebol escocês e lá aparecia a imagem que marcou uma geração, a de um exultante Joe Jordan, com os braços erguidos e a boca aberta num grito de vitória que permitia ver que lhe faltavam todos os dentes da frente. Para mim, durante algum tempo, aquela foi a imagem de marca do futebol escocês, uma imagem de garra e de disputa até ao limite – e mais além... – por cada bola, que depois tinha dificuldades em articular com a ideia de arrogância que o Tartan Army espalhara pelo Mundo antes do meu primeiro Mundial, o de 1978. Há no YouTube alguns notáveis documentários, como por exemplo o “Scotland 78: A Love Story”, da BBC, ou o “Scotland 78: The World At Their Feet”, da STV, nos quais se percebe de uma forma maravilhosa o que foi a construção e a vivência daquela seleção escocesa, que viajou para a Argentina como única representante das Ilhas britânicas, na sequência da eliminação da Inglaterra, portanto com a basófia em alta, para “ser campeã do Mundo”. O que dali saiu foi a eliminação logo ao segundo jogo da fase de grupos, um empate com o Irão, depois de uma derrota com o Peru, a baixar a crina aos escoceses. A Escócia de hoje já não tem jogadores do gabarito de Jordan, Gemmill, Dalglish ou Souness. No máximo apresenta um esforçado Scott McTominay, autor dos dois golos na vitória sobre a Espanha (2-0), ontem, e um lado esquerdo interessante, com Kieran Tierney e Andrew Robertson. Jogam no Manchester United, no Arsenal e no Liverpool FC, mas estão longe de poderem ser considerados peças importantes nos seus clubes. Ontem, no santuário de Hampden Park, Steve Clarke entrou com Angus Gunn, Ryan Porteous, Grant Hanley ou Lyndon Dykes, quatro homens em onze, que jogam em clubes do segundo escalão inglês – e nem todos estão na luta pela subida. Que diferença para os tempos de Joe Jordan! Não têm, é evidente, a mesma qualidade do avançado que em 1981, numa altura em que emigrar para a Série A italiana era o pináculo de uma carreira, saiu do Manchester United para o Milan. Têm provavelmente os dentes todos – mas, mais recentemente, até Jordan já se mostrou ao Mundo como treinador com a boca devidamente arranjada. E, sobretudo, sabem que não vão ser campeões da Europa. É isso que lhes permite encarar cada jogo com uma dose de realismo coerente com as necessidades da equipa. Não querem dar na bola com arte e glamour. Dão-lhe como podem e isso também é importante.
As mudanças de Espanha. A seleção de Espanha está numa fase complicada de metamorfose. Não tanto porque o selecionador Luís De la Fuente optou por mudar quase toda a equipa que três dias antes tinha ganho (3-0) à Noruega para a visita à Escócia, mantendo apenas o guarda-redes Kepa e os médios Rodri e Merino. Nem sequer porque ele optou por utilizar 22 dos 25 convocados para estes dois jogos – só os guarda-redes Raya e Sánchez e o médio Zubimendi não subiram ao relvado. Luís Enrique já não era propriamente um defensor da estabilidade e da constância. Mudava muito, mudava sempre, mas mantinha uma ideia-base como fator de estabilidade: o futebol. O problema desta Espanha não é mudar os jogadores, porque seja com Carvajal ou Porro, com Laporte ou García, com Olmo ou Pino, com Gavi ou Oyarzabal, vai ter sempre melhor equipa do que a Escócia e criar condições para lhe ganhar a maior parte dos jogos. O problema desta Espanha é ter perdido as referências em termos de futebol, é ter deixado de saber ao que joga. O jogo circular que os espanhóis praticavam desde Aragonés e Del Bosque e que foi radicalizado com Luís Enrique, o jogo que foi ridicularizado por esconder a bola dos adversários em passes sobre passes mas não chegar a finalizações, não era o meu favorito, chegava mesmo a aborrecer-me, mas era a identidade que colava aquela equipa. Numa das primeiras entrevistas que deu após o momento da sucessão, ainda corria o Mundial do Qatar, do qual, no entanto, os espanhóis já tinham sido eliminados, Luís De la Fuente pareceu-me ao mesmo tempo ambicioso e irrealista. Apareceu na altura no El País a dizer que o modelo espanhol, sim senhor, mas que um modelo baseado no contra-ataque, também, pois então, era a “inteligência pura”. “Sem ser pretensioso, há que olhar para como jogavam os meus sub21. Derrotámos equipas diferentes com versões diferentes. Tentarei configurar a seleção com jogadores de perfil diferente para, em cada momento, mudar o ritmo de um desafio ou o nosso estilo de jogo”, disse. Tenho a certeza de uma coisa: a Espanha estará na fase final do Europeu de 2024. Começo a ter dúvidas acerca da presença deste selecionador.
A super-Bélgica. O jogo foi particular e não deve servir de barómetro definitivo, mas os 3-2 na Alemanha mostram que a Bélgica superou com distinção o período Martínez e a linha de três atrás. Domenico Tedesco montou a equipa em 4x2x3x1, dando a de Bruyne a liderança do ataque, e a estrela do Manchester City mostrou-se à altura, com duas assistências e um golo. Lukaku volta a aparecer como ariete possante que suporta o sistema e nas alas há muita qualidade, com Ferreira Carrasco e Lukebakio, mas também Trossard e Bakayoko. Mangala e Onana foram duas boas surpresas a meio-campo e a defesa aguentou-se bem a quatro, só com dois centrais, mostrando complementaridade entre Faes e Vertonghen. A renovação da Bélgica promete que, pelo menos enquanto houver De Bruyne e Lukaku, não há razão para que o sucesso seja enterrado com os integrantes da geração de ouro que já foram embora.
Excelente. O António a que estamos habituados.
Futebol sem estrelas também é futebol. Grande texto, parabéns. Ab