Ronaldo herói mascara problemas
Portugal bateu a Irlanda (2-1) com um bis do melhor finalizador do Mundo, mas ainda não encontrou a identidade que ajude a ganhar quando ele falta.
Duas finalizações extraordinárias de Cristiano Ronaldo, já perto do final do jogo, permitiram a transformação de uma derrota que já se adivinhava (0-1) numa vitória suada e justa (2-1), contra a República da Irlanda, e mantiveram a seleção nacional no caminho que a levará à qualificação direta para a fase final do Mundial’2022, mas não mascararam os problemas que esta equipa continua a ter, sobretudo em fase de criação de uma identidade coerente com os seus jogadores. No jogo de ontem, Fernando Santos procurou driblar esta dificuldade com a introdução de dois médios criativos no onze – Bruno Fernandes e Bernardo Silva –, mas isso colidiu com a presença de três atacantes que são sempre mais reativos, mais viciados no espaço, e que apresentam dificuldades no diálogo com os médios. Só isso impediu a equipa de ligar jogo por dentro e de fazer valer com mais naturalidade uma superioridade que devia ter sido mais natural sobre um adversário que somou o 14º jogo oficial consecutivo sem conhecer a vitória.
Na noite em que acabou por bater o recorde de golos por uma seleção nacional, que pertencia ao iraniano Ali Daei, saindo de campo como herói, Ronaldo esteve no melhor e no pior que o jogo teve para oferecer. Saiu radiante, porque a equipa ganhou – e certamente porque o fez com a sua marca pessoal bem à vista. Mas tinha sido ele a falhar a grande penalidade com que a seleção podia ter ganho avanço logo desde a alvorada do jogo, da mesma forma que tinha sido ele (e Cancelo) a falhar defensivamente no canto em que os irlandeses fizeram o seu golo. Tal como passou depois muito tempo fora do jogo, quando Fernando Santos o pôs na esquerda, durante a segunda parte, de forma a dotar a equipa de um avançado-centro que ligasse a equipa (André Silva). Sucede que estas coisas não vão lá por enxerto. A utilização de um avançado capaz de dialogar com os médios precisa de ser trabalhada, rotinada – e boa parte do fracasso da seleção no último Europeu passou pelo facto de não ter sequer tentado compatibilizar Ronaldo com André Silva.
No jogo de ontem, se não foi lá pela arte, se não foi lá pela organização coletiva, Portugal acabou por lá chegar através da força dos números. Pela quantidade de gente que meteu na frente. Santos acabou com Ronaldo ao lado de André Silva ao meio, retirando-o do exílio na esquerda a tempo de o ver resolver o jogo. Gonçalo Guedes aparecia aberto na direita e Diogo Jota aberto na esquerda, numa espécie de 3x3x4 que, no entanto, não é repetível na maior parte dos jogos. A alternativa, por isso, tem mesmo de passar pela construção de uma identidade coerente com os jogadores que o selecionador tem ao seu dispor. Pode ser uma identidade mais reativa, com os tais dois médios de contenção, caso em que convida os adversários a subir para depois os surpreender na busca da profundidade. Mas faz mais sentido que seja uma identidade mais dotada de iniciativa, caso em que se torna urgente fazer combinar os médios criativos de que se dispõe com os avançados que pisam o campo de modo a meter mais segurança na criação em vez de precipitar o envio de bolas para a área, como em boa parte do jogo de ontem. E aí é claro que a solução tem de passar por André Silva, o melhor avançado português em jogo de posse, como tem de passar por Ronaldo, ainda o melhor finalizador do Mundo. Tudo o que há a fazer – e não é pouco – é construir uma ideia em que eles sejam compatíveis.
No jogo de ontem, no entanto, Ronaldo nem esteve bem até ao momento em que o ganhou. E André Silva nem chegou a ser importante, a não ser pelo espaço que ocupou, pelas linhas de passe que permitiu e que serviram, pelo menos, para desviar a atenção das duas linhas defensivas irlandesas, valendo mais algum à-vontade aos jogadores que ocupavam as alas. Foi mais consistente Jota, que na primeira parte cabeceou uma bola ao poste e obrigou o guardião irlandês a fazer uma boa defesa. Como o foi Bernardo Silva, que, de volta ao meio-campo, se tornou fulcral na forma como Portugal levava a bola para a frente com qualidade. Como o foi Palhinha, imperial nos duelos e a beneficiar de uma arbitragem mais “europeia” para ganhar muitas divididas e recuperar muita bola sem que lhe fossem assinaladas faltas pela contundência. Como o foram João Mário e Gonçalo Guedes, que saltaram muito bem do banco, um pelo critério e qualidade que deu, o outro pela capacidade de se impor no um para um e de achar soluções interessantes para cada lance. Em resultado disso, Portugal acabou por ganhar com justiça, mesmo que os golos tenham surgido aos 89’ e aos 90+6’: além desses dois lances de Ronaldo, houve ainda a bola no poste de Jota, o penalti falhado e pelo menos mais duas finalizações em excelente posição que não atingiram o alvo, uma de Bernardo Silva e outra de João Mário.
Depois do jogo, Fernando Santos recordou uma história de Jimmy Hagan, o inglês que treinou o Benfica no início da década de 70, quando o hoje selecionador despontava na equipa. “Uma vez perguntei-lhe por que é que nunca saía o Eusébio, nem sequer quando estava mal. E ele respondeu: ‘se sai o Eusébio e depois ele faz falta, o que é que se faz?’”, contou Santos, já em descompressão com os três pontos na bolsa. Os Eusébios – ou os Ronaldos – permitem vitórias que são muito mais resultado das individualidades do que da capacidade de criar a tal identidade. Mas é esta que permite ganhar jogos quando faltam os Eusébios. E tal como não teve Eusébio para sempre, há-de chegar a altura em que Portugal deixará de ter Ronaldo.