Quem ardeu na Mealhada
O grito dado pelos clubes na Mealhada serve para manifestar descontentamento com o Governo, mas sobretudo com a FPF e a Liga que os representam.
Não foi só o leitão que saiu chamuscado da cimeira da Mealhada, o invulgar encontro entre os presidentes dos clubes da I Liga que ontem serviu para produzir um comunicado cheio de reivindicações relacionadas com a situação de crise que o setor do futebol vive um pouco por todo o lado. Se se interessa pelo futebol e lhe cheirou a queimado, é bem provável que tenha sido a pele de Pedro Proença, João Paulo Rebelo e até de Fernando Gomes e António Costa a sentir o calor das brasas. O que os presidentes dos nossos maiores clubes disseram através daquele comunicado é que não se sentem representados, que querem assumir a batalha na primeira pessoa do plural em vez de a entregarem a quem até aqui esteve mandatado para a travar. E isso tem de ter consequências.
Que o futebol não se revê no Secretário de Estado do Desporto já se tinha percebido através de intervenções sucessivas e cada vez menos subtis da tradicional ironia de Pinto da Costa. Mas João Paulo Rebelo tem duas vantagens neste processo: não é Secretário de Estado do Futebol e não depende dos clubes, mas sim de António Costa, chefe do governo. E o Primeiro Ministro até se tem esforçado por manter o setor feliz, ainda que cometendo o erro de tomar as partes pelo todo. Fê-lo, por exemplo, quando nega a presença de público nas bancadas em nome da pandemia mas depois diz que o crescimento dos números de infetados em Lisboa não teve nada a ver com os festejos do título do Sporting. Já o tinha feito também quando cedeu a todas as exigências da UEFA para a realização da final da Liga dos Campeões no Porto, no sábado, ao mesmo tempo que negara os pedidos feitos pelos clubes em Portugal. Costa terá sempre achado que estava a fazer feliz o futebol, mas não estava. Fez, sim, a felicidade de Fernando Gomes e da FPF, que voltaram a dar a mão a Çeferin e subiram mais um degrau na hierarquia invisível de poder do futebol na Europa.
Terá sido essa “traição” da FPF que motivou este mini-grito dos clubes, que agora querem excluir todos os intermediários do processo de diálogo com o Governo. Por que carga de água terá a FPF conseguido que o Governo satisfizesse as necessidades e vontade da UEFA e não é capaz de fazer o mesmo quando se trata dos interesses de quem está cá dentro e toma em seu nome todo o risco de desenvolvimento do futebol nacional? A pergunta tem mais de uma resposta possível. “Porque o próprio Governo só está interessado na alavancagem da economia se ela envolver a entrada de turistas em Portugal” ou “Porque não fez tudo o que podia por isso”. E a melhor forma de os clubes perceberem qual é a resposta certa é irem lá falar com o Governo eles mesmos, dispensando quem os representava, que é a Liga. E aqui é Pedro Proença quem começa a sentir o calor na pele. Basta pensar nas diferenças entre esta cimeira de clubes e a direção da Liga. Primeira diferença: ontem estavam todos e na direção da Liga só estão oito, cinco do primeiro escalão e três do segundo. Mas como provavelmente também não vão todos falar com o Governo, entra em campo a segunda diferença: na direção da Liga estão Pedro Proença e um representante da FPF.
À mesma hora a que os objetivos comuns levaram Frederico Varandas, Pinto da Costa e Luís Filipe Vieira a afastar as inúmeras diferenças que todos os dias os seus oficiais de propaganda vêm papagueando e a sentarem-se à mesma mesa para degustar leitão, Fernando Gomes e Pedro Proença estavam no Fórum da Associação Nacional dos Treinadores de Futebol. E se Gomes ainda terá mais com que se preocupar, como as várias seleções nacionais, o futebol de formação ou os campeonatos amadores – também menosprezados durante este ano e meio de pandemia, mas sem a força dos presidentes dos maiores clubes para fazer ouvir as suas reivindicações – já Proença viu ser posta em causa a existência do que ele representa no futebol profissional. Para que serve a Liga se não é para representar os seus associados? As circunstâncias em que se verificou o primeiro encontro dos presidentes dos três grandes, no ano passado, na Presidência da República, em Belém, já tinham feito soar o alarme, porque Proença só surgiu na lista de convidados à última hora – e alguém terá feito gala em que isso fosse público e notório. Agora vê os clubes dispensarem o organismo a que preside na hora de defenderem os seus interesses no diálogo com o Governo.
Esta é a altura em que Proença tem de pôr de parte a via conciliadora e explicar onde se situa. Porque se não o faz, se se mantém em silêncio, acaba por arder no mesmo lume que serviu para assar o leitão servido na Mealhada.