Preconceitos da classe operária e da neo-burguesia
É um erro tão grande achar que esta seleção de Portugal não pode "jogar bonito" como é criticar o selecionador por perceber que só há uma bola em campo e que todo o Maradona precisa do seu Batista.
Há um preconceito quase tão grande de Fernando Santos contra o “jogar bonito”, ou, como ele diz, “jogar bonitinho”, como há de uma ainda assim grande faixa de adeptos portugueses contra o selecionador que lhes deu a ganhar os primeiros títulos no futebol internacional, acusando-o de jogar “feio” e “à defesa”. A seleção nacional venceu ontem, fora de casa, uma Croácia a quem faltavam alguns jogadores importantes mas que não deixa de ser a finalista vencida do último Mundial, potencialmente a segunda melhor equipa do Mundo em título. E, apesar de ter ganho com justiça, também ganhou com sorte, porque cometeu muitos erros. E, não, nenhum deles foi jogar “bonitinho”. Portugal colocou em risco a reação após a derrota contra a França por ter sido mole. “Bonitinho” joga a Espanha. E isso não quer dizer que seja mole, como se viu nos 6-0 com que aviou a Alemanha.
Joachim Löw, o treinador alemão que presidiu à cerimónia da revolta histórica do fantasma dos dentes de Battiston (1), apanhou seis mas ao menos escolheu os adjetivos certos: “Foi um dia muito escuro”, afirmou. “Foi tudo horrível”, completou. Ora nem tudo foi horrível na noite da equipa de Portugal em Split. A começar porque ganhou. Mas não há uma relação direta entre o jogar bonito e o ser mole, entre o enfeitar as jogadas e o deixar alargar o espaço entre linhas, entre o jogar curto num relvado que não o recomendava e o demorar a reagir à perda da bola ou o mau posicionamento em organização defensiva. E se Portugal sofreu para ganhar em Split foi precisamente por não ter sido capaz de manter a intensidade competitiva e a concentração durante largas fatias do jogo. Aconteceu, por exemplo, em alguns passes perdidos ainda no nosso meio-campo. Sucedeu nos dois golos da Croácia, com as abordagens macias de Rúben Semedo a serem mais notadas, mas com erros de posicionamento de outros jogadores antes ou depois disso – Rúben e Nélson Semedo a colocarem Vlasic em jogo no início da jogada do primeiro, Danilo entre os centrais em vez de proteger a entrada da área no final do lance do segundo. E a questão é que já tinha sucedido antes e voltou a suceder depois, por exemplo, com o posicionamento de Mário Rui em lances nos quais Juranovic ou Brekalo estiveram perto de marcar.
Para fazer as pazes com o seu âmago, esta seleção precisa de erradicar de vez o preconceito de classe que tanto se vê no seu líder como nos seus adeptos. Santos continua a ser o homem gregário, trabalhador, que não admite dar-se ao luxo de coisa nenhuma, quando tem ao seu dispor jogadores que recomendavam uma flor de quando em vez, um futebol mais ligado, ou como ele diz com desdém, “mais bonitinho”. Os adeptos, fiéis ao espírito do “oito-oitentismo” nacional, reagem aos golos que Ronaldo, Félix, Jota ou Bruno Fernandes marcam nas melhores Ligas da Europa e passam a achar que Portugal tem os jogadores mais talentosos do Mundo. Mas assim por larga distância. E portanto, não só acham que tudo se resolve somando talento em campo, como se houvesse duas bolas, uma para cada equipa, como quando a coisa corre pior, como foi o caso contra a França – que também tem gente a brilhar nas melhores Ligas do Mundo, coisa que os adeptos nacionais ou não sabem ou tendem a esquecer – decretam logo que é a pequenez do treinador que está a limitá-los. Que a tática de Santos é curta para tanta qualidade.
Acho que a tática e a estratégia da seleção nacional podem ambas ser melhoradas e ainda há dias aqui escrevi sobre isso. Mas tenho a certeza de que nem Santos limita o talento da equipa com as suas escolhas nem o problema de Portugal passa por jogar bonito. O que quero ver é uma equipa de Portugal a jogar bonito, concentrado e competitivo, porque nenhuma destas coisas invalida qualquer das outras. E porque se sei que só há uma bola em campo e para os ases a fazerem brilhar é preciso haver primeiro quem a conquiste – a cada Maradona o seu Batista… – também acho um crime querer esconder o talento de que esta equipa dispõe atrás de ideias puramente utilitárias. Até Março, que é quando a seleção regressa, todos teremos muito tempo para pensar nisso.
(1) Foi também em Sevilha, na noite em que uma entrada “assassina” de Schumacher partiu vários dentes a Battiston, deixando-o KO, que a Alemanha Federal castigou uma França que jogava bonito mas era pouco concreta, eliminando-a nos penaltis da meia-final do Mundial’82.