Preconceito de classe no treinador do Benfica
A aposta em Jesus, há onze anos, correspondeu à mudança de paradigma no Benfica, que deixou de se ralar com o "renome internacional". O treinador não tem de ser conhecido lá fora mas na SAD.
Houve uma altura no Benfica de Vieira em que aquilo que mais importava era ir buscar um treinador de renome internacional. Havia uma espécie de preconceito de classe: o treinador tinha de ser alguém conhecido lá fora, com boa imagem, que ficasse bem na fotografia e num fato de griffe. Depois, com Jorge Jesus, Vieira quebrou esse estereótipo. Ganhou como nunca tinha ganho, com um treinador vindo da Reboleira, que masca pastilha de boca aberta e não é propriamente um exemplo de eloquência verbal. Depois de Jesus, o Benfica parecia ter mudado de paradigma. Ganhou e perdeu, como é normal. Mas isso parece ter sido o suficiente para regressar a via do preconceito e para se falar num treinador “reconhecido no panorama internacional”. É um erro. E no caso do Benfica será um erro duplamente grave porque ele já foi cometido.
É verdade que os grandes do futebol português já passaram todos por aí, sobretudo nos períodos de maior jejum. O FC Porto esteve lá nos anos 70, com Aymoré, Riera ou Docherty, mas depois encontrou o rumo com José Maria Pedroto e foi campeão europeu com Artur Jorge. O Sporting andou na década de 80 de volta de Venglos, Toshack ou Burkinshaw, mas interrompeu o jejum com Augusto Inácio. E no Benfica, que depois do período áureo da década de 60 andou a ser sucessivamente campeão com homens como Hagan ou Mortimore – que nunca tinham passado de segundas figuras em Inglaterra a não ser como jogadores – a fome de títulos dos anos 90 e do início deste século levou à contratação de técnicos como Trapattoni, Koeman ou Quique Flores, já para nem falar de Camacho. Em comum, estes treinadores tinham o tal “renome internacional”. Mas a questão é que no rendimento de uma equipa isso conta mais ou menos zero – e por isso mesmo, à exceção de Trapattoni, que era indiscutivelmente competente como líder, todos os outros fracassaram. Importante para um treinador ter sucesso não é ser conhecido lá fora. É ser bom no que faz – e desses temos muitos por cá – e, sobretudo, ser reconhecido dentro dos gabinetes da SAD. Ser permanentemente legitimado em palavras e em ações.
Foi nisso que o Benfica falhou com Vitória e Lage. É isso que o Benfica tem de ter em conta antes de enterrar mundos e fundos na contratação de um treinador para o liderar no período que aí vem. Porque nem tudo – ou na verdade quase nada – passa por uma demonstração de poderio no mercado internacional.
Olhando para o percurso desportivo de Vieira, creio que este preconceito de classe nem é coisa que o afete a ele pessoalmente. Se juntarmos o período no FC Alverca ao que vive ainda no Benfica, poderemos identificar três ou quatro treinadores que o marcaram – consoante incluamos ou não no lote Fernando Santos, o único homem com quem o presidente do Benfica reconhece que falhou, por não lhe dar tempo. Pessoalmente não o incluo, por isso mesmo, e restrinjo este grupo a três nomes: Jesualdo Ferreira, José António Camacho e Jorge Jesus. Jesualdo é o treinador do período da inocência, um período em que Vieira reconhecia que era novo no Mundo do futebol e se sentia fascinado com o conhecimento do “professor”. Por isso o contratou para o FC Alverca e não descansou enquanto não o colocou a frente do Benfica (e fê-lo perante a pressão para fazer regressar Mourinho). Essa mesma humildade, que o fez ser capaz de se curvar perante o conhecimento de Jesualdo, teve depois a face mais sombria, quando o obcecou por Camacho, um homem de faces avermelhadas, imagem do trabalhador incansável mas com pouco para acrescentar no plano futebolístico. Jesus chegou quando Vieira resolveu ser genuíno e assumiu a faceta popular do dirigente do Bairro das Furnas, mandando passear o preconceito colocando-o atrás da competência, que por aquele tempo ainda podia ser discutida no treinador que chegava de Braga.
Não estou com isto a dizer que o Benfica devia fazer regressar Jesus – aliás, já disse que me ia rir muito com as justificações que o presidente possa vir a encontrar para explicar esse volte-face, depois de o ter escorraçado por razões estratégicas. Só estou a dizer duas coisas, completamente diferentes. A primeira é que foi um erro tê-lo posto porta fora. A segunda é que o renome internacional é uma coisa cara e nem sempre (quase nunca) suficiente para apresentar resultados. Fica muito mais barato – e até é bastante mais eficaz – suportar até ao fim um treinador no qual se acredite. Como Vieira fez com Jesus em 2013, depois de o treinador perder campeonato, Taça de Portugal e Liga Europa na reta final.