Precisamos mesmo da FIFA e da UEFA?
A FIFA e a UEFA continuam entretidas em guerras de bastidores e Miguel Angel Gil já avisou: "se nos forçam a escolher entre pai e mãe, acabamos por sair de casa".
Jesus Gil y Gil sempre foi um tipo excessivo. Visceral, de amores e ódios, por vezes brilhante, noutras asqueroso. Miguel Angel Gil Marín, o filho que pegou no Atlético Madrid após a queda do pai, não lhe seguiu as pisadas nesse particular e sempre transpirou racionalidade – até as intervenções que fez na série documental “O Pioneiro”, que está disponível na HBO, mostravam um homem capaz de apontar os defeitos do patriarca da família. Ontem, porém, o acionista maioritário do Atlético Madrid fez lembrar o pai quando, numa frase, sintetizou com brilhantismo aquio que está a correr mal na política do futebol mundial. “Se nos obrigam a escolher entre a mãe e o pai acabaremos por ir embora de casa”, disse, em Madrid, no World Football Summit, a propósito da constante guerra de influências entre a FIFA de Gianni Infantino e a UEFA de Aleksandr Çeferin. E o debate vale a pena: precisamos mesmo de uma FIFA e de uma UEFA?
A guerra teve ontem mais outro episódio, na Moldávia, onde o Comité Executivo da UEFA se reuniu e reiterou a sua firme oposição à intenção da FIFA passar a fazer jogar o Campeonato do Mundo a cada dois anos. No fundo, todos concordam que as coisas estão mal. Que não é possível continuar a esticar os calendários e a fazer pesar tantos quilómetros de competição nas pernas dos jogadores. Mas depois portam-se como uma mãe e um pai desavindos, cada um a culpar o outro e a apontar os defeitos na ação proposta pelo outro, com a intenção de o deixar mal visto. Muito desta guerra se joga na comunicação, na capacidade para convencer os influenciadores de que se tem razão. A FIFA convidou uma série de ex-jogadores para uma sabatina no Qatar, de onde muitos vieram satisfeitos com o plano Wenger e a apregoar a “boa nova”. Ao mesmo tempo, a UEFA começou a mobilizar gente do outro lado, a ponto de termos visto editoriais contra o plano nascerem como cogumelos no momento em que, “por coincidência”, a FPF e a Liga Portugal anunciavam que eram firmemente contrárias a que ele vá avante.
Claro que há razões válidas dos dois lados. Vejo razoabilidade na ideia defendida pela UEFA, segundo a qual a duplicação dos Mundiais virá retirar peso institucional e comercial à prova – ainda que depois isso contradiga outro argumento, que é o de que vai travar o crescimento do futebol feminino. Da mesma forma, acredito nas boas intenções do organismo que manda no jogo na Europa quando Çeferin alega que continua à espera de uma resposta a um pedido de reunião que fez à FIFA, para debater o tema. Do outro lado, acredito na validade do plano Wenger, que parte de um pressuposto completamente oposto àquele que a comunicação dos adversários lhe associa: nasce da necessidade de aligeirar os calendários e não de os atrofiar ainda mais, sendo o Mundial bienal uma forma de pagar tudo isso. Porque até hoje já ouvi muitas vozes a dizer que os jogadores não podem continuar a jogar tantas vezes, mas ainda não ouvi nem li nenhuma associação de classe aceitar que terão de passar a ganhar menos dinheiro – se se joga menos, gera-se menos receita e, a não ser que aumentem os jogos de perfil elevado e se reduza nos desafios mais insignificantes, haverá menos bolo para distribuir por todos.
Admito até que esta guerra pelo Mundial bienal seja estratégica, que a FIFA o tenha lançado apenas para dele abdicar, ganhando em troca o desejado Mundial de clubes, como já se vai soprando entre quem acompanha estas coisas mais de perto. Mas tudo isto só vem reforçar a importância da pergunta que fiz lá em cima. Precisamos mesmo de uma FIFA e de uma UEFA? Eu diria que sim, enquanto funcionarem como defensoras da mais pura tradição do futebol, como garantes do mérito desportivo por oposição ao poder do dinheiro na atribuição de vagas nas competições, como reguladoras das lutas de influência entre caciques ou forças motrizes do combate às irregularidades financeiras a que os milhões movimentados sempre vão convidando. E é aqui que se coloca a questão que certamente esteve na base da ideia defendida por Miguel Angel Gil: e a FIFA e a UEFA estão a fazer isso? Isso já é discutível. Certo é que o fariam melhor se não andassem entretidas a ver quem é capaz de subjugar a outra. E que se isto não acaba rapidamente teremos mesmo um movimento de emancipação a ver a luz do dia.
Há três décadas que acho que o futuro do futebol passa por uma Superliga europeia. Já o escrevo desde os meus tempos no Expresso, de onde saí em 1994, e onde acompanhei de perto o projeto do consultor britânico Alex Fynn, que depois veio a dar origem ao nascimento da Liga dos Campeões. Na altura, tudo o que os grandes clubes queriam era mais dinheiro – a UEFA de Lennart Johansson entendeu isso e deu o passo em frente, permitindo que tudo seguisse na paz do senhor, com a normalidade desportiva defendida por quem de direito. Na recente tentativa fracassada de secessão, havia motivações muito diversas. Real Madrid e FC Barcelona avançaram porque estão falidos. A Juventus avançou porque o mais jovem dos Agnelli acredita que é um predestinado sobre cujos ombros foi depositada a nobre missão de modernizar o futebol. Os donos norte-americanos de clubes avançaram porque para eles é assim, em associação privada, que o desporto de alto nível faz sentido. O Atlético Madrid de Miguel Angel Gil avançou, como o próprio explicou ontem, porque ganhou desportivamente o direito a estar lá, recuando quando percebeu que estava a pôr em causa as fundações do futebol na Europa.
Das palavras de Miguel Angel Gil, no entanto, duas coisas ficam claras. A primeira é que isto ainda não acabou. A segunda é que a FIFA e a UEFA estão de costas para o precipício e só as duas juntas podem dar a volta a isto. Porque nós até podemos achar que precisamos delas, mas os grandes clubes, definitivamente, estão-se nas tintas.