Portugal sem saudades do chicote
Em seis jornadas não há treinadores despedidos na I Liga. Há várias razões a contribuir para isso e nenhuma delas é o regulamento, que continua a favorecer a balbúrdia.
Já lá vão seis jornadas da Liga Portuguesa e ainda não se ouviu o estalar do chicote. Esta não é uma situação nova – há três anos, o primeiro a saltar foi José Peseiro, no Sporting, após uma derrota com o Estoril, na Taça da Liga, no último dia de Outubro – mas é ainda assim algo de invulgar numa Liga onde, regra geral, há sempre um par de treinadores demitidos na volta de aquecimento. Gostava de achar que a novidade desta época tem a ver com responsabilização dos dirigentes, face a orçamentos que a pandemia esticou ainda mais, mas infelizmente ainda não atingimos esse grau de maturidade. Não houve chicotadas psicológicas neste arranque de Liga sobretudo por uma razão: os treinadores são cada vez mais competentes e mesmo os que andam por baixo na tabela têm mostrado serviço.
Em Inglaterra, as casas de apostas costumam até ter probabilidades para quem quiser meter dinheiro no nome do primeiro treinador a ser demitido. Este ano, o francês Patrick Vieira (Crystal Palace) e o espanhol Xisco Muñoz (Watford) começaram como favoritos, mas desde o início da época foram ultrapassados na lista por Mikel Arteta (Arsenal) e Steve Bruce (Newcastle United). Em Portugal, a primeira chicotada não costuma fazer-se esperar muito. Na época passada, à terceira jornada já Tiago Mendes (Vitória SC), Mário Silva (Rio Ave) e Ricardo Soares (Moreirense) tinham saltado. Há dois anos, colocando a barreira na mesma sexta ronda, Jorge Silas (Belenenses SAD), Filipe Rocha (FC Paços de Ferreira) e Marcel Keizer (Sporting) também já tinham sido rendidos. Este ano, a Liga principal tem estado imune ao fenómeno, ainda que, no escalão secundário, esta semana a Académica se tenha separado de Rui Borges e o Nacional tenha rescindido com Costinha. Sendo que o primeiro está já a ser falado para o lugar do segundo.
Esta dança de cadeiras é cada vez mais vulgar no futebol português, mas parece haver sinais de que pode cair em desuso. De 2018 para 2019, só quatro treinadores mantiveram o lugar no mesmo banco: Sérgio Conceição (FC Porto), João Henriques (Santa Clara), Jorge Silas (Belenenses SAD) e António Folha (Portimonense). No entanto, se olharmos para os 18 que começaram as duas Ligas, houve mais três repetentes, que mudaram de clube mas ficaram à tona. De 2019 para 2020, só houve dois treinadores a manter a vaga: João Pedro Sousa (FC Famalicão) e Sérgio Conceição (FC Porto). Mas também aqui se verificaram mais dois casos de manutenção, ainda que noutro clube. Do ano passado para este ano já tivemos oito casos de treinadores que continuam em funções: Rúben Amorim no Sporting, Sérgio Conceição no FC Porto, Jorge Jesus no Benfica, Carlos Carvalhal no SC Braga, Daniel Ramos no Santa Clara, Paulo Sérgio no Portimonense, Pako Ayestarán no CD Tondela e Petit na Belenenses SAD. Como a estes podemos somar os casos de Bruno Pinheiro (Estoril), Álvaro Pacheco (FC Vizela) e Armando Evangelista (FC Arouca), que também começaram a época anterior nos seus atuais clubes, na II Liga, conclui-se que bem mais de metade (são 11 em 18) dos atuais treinadores da I Liga já leva mais de um ano no cargo que agora ocupam.
Há uma série de fatores a contribuir para esta onda de estabilidade. Um deles é, seguramente, a exiguidade orçamental. A pandemia veio cortar nas receitas de todos os clubes, que por isso estão ainda mais apertados do que o habitual. Se nem o poderoso FC Barcelona tem dinheiro para demitir Ronald Koeman e começar a agarrar o futuro com Xavi Hernández, como é que os clubes portugueses de meio da tabela para baixo hão-de ser capazes de brandir o chicote com a mesma facilidade de outros tempos. Depois quero acreditar que aí haja outra questão em cima da mesa: o facto de esta nova geração de treinadores se recusar a aceitar o status quo, no qual o despedido que quisesse receber o que lhe era devido ficava imediatamente riscado e impedido de entrar na rotação de um mercado onde há, evidentemente, atropelos à livre concorrência. Esta era uma questão onde seria importante intervir do ponto de vista da regulamentação, de forma a abrir o mercado, por exemplo impedindo os clubes de contratar um novo treinador enquanto não pagassem a totalidade do contrato ao que querem despedir e, do outro lado, proibindo um treinador despedido de voltar a exercer num outro clube na mesma época.
Creio que a razão fundamental para esta estabilidade, no entanto, seja outra. É que temos treinadores cada vez melhores. Olha-se para o fundo da tabela da Liga e o que se vê? Um CD Tondela de princípios enraizados, onde Pako Ayestarán vem, além do mais, recomendado por uma excelente Liga anterior. Uma Belenenses SAD com noção de que tem um plantel muito curto, onde só Petit tem conseguido milagres como segurar as pontas para a manutenção. Um FC Famalicão que ainda não ganhou, que só tem três pontos, mas que Ivo Vieira salvou na época passada e que ainda por cima joga bem. Um Moreirense que já fez a vida negra a Benfica e SC Braga, que tem identidade coletiva conferida por João Henriques. Um Santa Clara penalizado pela aventura europeia e pela perda de jogadores importantes no mercado, mas que Daniel Ramos levou recentemente a um histórico sexto lugar e que irá por certo recuperar. Um FC Arouca e um FC Vizela que acabaram de subir graças à estabilidade das apostas em Armando Evangelista e Álvaro Pacheco e que, além disso, também estão a jogar futebol positivo. A primeira chicotada há-de chegar em breve – disso não duvido. Mas há outra coisa da qual tenho a certeza: quem a executar dificilmente melhorará.