Poder e racionalidade no futebol
A UEFA quer trocar o Fair-Play Financeiro por um sistema de teto salarial. Mas os problemas do futebol só se resolvem com poder ou racionalidade. O PSG tem poder. Ao Barça faltam as duas coisas.
O Times de Londres revelou ontem que a UEFA está a pensar substituir a regra do Fair-Play Financeiro, que vigora há pouco mais de uma década, por um modelo que inclua a criação de um teto salarial, faltando definir se este será global – e por isso necessariamente nivelado por cima, pelos clubes mais ricos – ou se se formará com base numa percentagem da receita que cada clube atrair. Ainda que dependa da boa vontade das Ligas nacionais para, em nome de uma concorrência interna saudável, a alargar também a clubes que não joguem competições europeias, a ideia é boa. Mas atrevo-me a dizer que não resolve muita coisa, uma vez que tal como as limitações do Fair-Play Financeiro, deixa tudo nas mãos da honestidade dos donos de clubes, que continuam a poder dar injeções de hormonas em receitas como as vindas dos patrocínios, de empresas que também lhes pertencem, assim aumentando artificialmente os tetos salariais. No fundo, é tudo uma questão de poder e de racionalidade. Quem não tem um nem a outra, afunda.
A facilidade com que megagrupos como o QSI – Qatar Sports Investments – mudam o dinheiro do bolso esquerdo para o bolso direito do casaco faz toda a diferença para um clube como o FC Barcelona, por exemplo. Paris Saint-Germain e Barça têm o mesmo problema: uma gestão irracional. Mas as motivações dos dois são bem diferentes. De um lado a gestão assume a possibilidade de perdas em nome de uma revolução na hierarquia do futebol europeu e continua a seguir alegremente, no meio da euforia, pouco lhe importando que as contas refiram a necessidade de, até ao final do mês, realizar 180 milhões de euros em vendas – a noção é a de que o dinheiro aparecerá sempre, nem que seja preciso ir buscá-lo ao outro bolso. Do outro, não há bolsos onde ir buscar esse dinheiro que falta e, à hora a que escrevo, não havia ainda solução para proceder à inscrição dos jogadores que o clube contratou neste mercado, bloqueada pela necessidade de fazer baixar a massa salarial para o tal percentual de receita esperada. No fundo, na realidade em que nos movemos – que é uma realidade global, não é exclusiva do futebol –, não há regras capazes de fazer aquilo que devia ser feito pelo bom senso.
Em Paris, a euforia das chegadas de Messi, Donnarumma, Hakimi, Sérgio Ramos e Wijnaldum – quatro dos cinco a custo zero, mas com salários brutais, fazendo crescer os custos com pessoal muito para lá de qualquer limite razoável – é tal que, em vez de se centrar nos 180 milhões de euros que aparentemente terão de realizar em vendas até ao fecho do mercado, os responsáveis já pensam na contratação de Ronaldo daqui por um ano, caso não consigam renovar com Mbappé. Na porta de saída está gente como Kurzawa, Kehrer, Icardi, Sarabia, Gueye, Diallo, Rico, Herrera ou Rafinha – não se prevê que a razia chegue a Danilo. Jogadores que farão sonhar muitos, mas que apresentam um problema ao mercado: ganham muitíssimo dinheiro. Dir-me-ão: mas se o PSG quer ver-se livre deles, então que os empreste e continue a pagar-lhes o salário! Errado! Porque o problema do PSG não é o dinheiro – esse aparecerá sempre, nem que seja do outro bolso. O problema do PSG é fazer as contas baterem certo. E, para isso, tem de tirar estes gastos dos seus livros. Pode pagar a estes jogadores e a muitos outros que apareçam, porque tem dinheiro para isso e muito mais, mas não pode justificar esses gastos.
Bem pior é o problema do FC Barcelona, que com a perda de Messi viu o montante gasto em salários descer dos 110 para os 95 por cento da receita esperada, mas ainda está longe dos 70% que lhe permitam inscrever Depay, Eric García ou Agüero. Não tendo a hipótese de fazer crescer a receita – e concomitantemente o teto salarial – com as tais injeções de hormonas, as últimas notícias dão conta de tentativas de baixa salarial aos capitães, Busquets, Alba e Piqué. Mas isso não só deverá ser curto como não é líquido que os jogadores aceitem. É daí que, tal como no caso do PSG, a conversa muda para o lado dos excedentários. Jogadores como Umtiti, que estranhamente apareceu nos jornais de ontem como estando na órbita do Benfica. O defesa-central francês ganha 10 milhões de euros/ano e está fora do alcance nem é só do Benfica – é da maior parte dos clubes que não pertençam à elite financeira do futebol. Mesmo aqueles que possam eventualmente ter possibilidade de arriscar, não quererão fazê-lo com um jogador que foi titular oito vezes na época passada (e 14 na anterior, por sinal). Problemas como o de Umiti – ou de Coutinho, dez vezes titular em 2020/21 – nasceram na irracionalidade da gestão de clubes de futebol que abrem os cordões à bolsa sabendo que as coisas podem dar certo ou errado, mas seguem sempre para a próxima aposta antes de fechar a anterior.
Umtiti chegou ao FC Barcelona em 2016, por 25 milhões de euros. Foi titular durante os dois primeiros anos, mas depois deixou de servir. A racionalidade da gestão mandaria que antes de lhe contratar substituto, o valor que lhe é pago fosse libertado dos livros, mas não é assim que funciona o futebol. Alegam de Camp Nou, a propósito das contratações feitas este ano, antes de ser assegurado que os jogadores poderiam ser inscritos, que se não contratassem os jogadores ali iam perder a oportunidade, porque eles vieram a custo zero e acabariam por assinar por outros clubes. É admissível. Mas, aqui chegados, como se resolve o problema? São os jogadores que cedem, abdicando dos salários para resolver um problema ao clube? Isso talvez se faça com figuras históricas em final de carreira, como Piqué ou Busquets, mas por que razão se há-de fazer com gente como Umtiti ou Coutinho? Se fosse ao contrário, se os jogadores estivessem presos por contratos a ganhar menos do que justificam em campo mas impossibilitados de ir à vida deles, os clubes facilitavam? Claro que não – a não ser que a tal fossem convencidos por empresários, a troco de ganhos futuros.
O problema do futebol pode ser regulamentado, com Fair-Play Financeiro ou tetos salariais, mas não se resolve a não ser de uma forma: com racionalidade. E isso, infelizmente, não se põe na lei.