Pedroto e as batalhas de Conceição
Conceição já igualara Pedroto em total de campeonatos ganhos, agora supera-o entrando na quinta época seguida no FC Porto. Mas ainda tem muito a aprender com as batalhas do guru do pintodacostismo.
Ouço e leio que o fator decisivo para a renovação de Sérgio Conceição com o FC Porto foi a “comunicação global a uma só voz”, para “proteger” o treinador e lhe evitar riscos de “sobre-exposição”. E sorrio. Não contesto, que não estive na sala das conversações, mas nunca me pareceu que esse fosse um fator decisivo ou sequer minimamente importante, nem para o treinador nem para Pinto da Costa. Conceição entrará no quinto ano seguido como treinador do FC Porto, algo que nunca ninguém fez nas quase quatro décadas – fará 40 anos em Abril de 2022 – de presidência de Pinto da Costa, o que o aproxima da importância assumida por esse guru do “pintodacostismo” que foi José Maria Pedroto. E, conforme bem sabem os que leram ou viveram a história, Pedroto nunca foi de se esconder nem alguma vez precisou de “proteção” – Pedroto era, como o é agora Conceição, na génese, a definição de exposição. Ainda que, ao contrário do treinador atual, escolhesse as suas batalhas, mais estratégicas e menos sanguíneas, protegê-lo seria negá-lo.
Pedroto foi treinador do FC Porto por três vezes. A primeira, desde Agosto de 1966 a Março de 1969, acabou de forma abrupta, quando, a um ponto do Benfica na liderança, o treinador quis impor estágios antes dos jogos e alguns dos jogadores mais influentes recusaram a ideia, porque era coisa que não lhes dava muito jeito. Pedroto ainda levou a sua avante, afastou alguns desses jogadores dos jogos com a CUF, a Académica e o União de Tomar, mas os maus resultados nestas duas últimas partidas levaram a direção a optar pelo lado dos jogadores – e foi o adjunto António Morais a acabar o campeonato, que o Benfica ganhou com dois pontos de avanço. O treinador voltou em 1976, depois de levar o Boavista ao segundo lugar – o FC Porto tinha sido quarto. Até foi preciso fazer uma Assembleia Geral para permitir o regresso do proscrito, porque esse era o desejo expresso de Pinto da Costa, que chegara a diretor do departamento de futebol. Os dragões acabaram em terceiro lugar na primeira época e depois ganharam dois campeonatos seguidos, sempre em cima da retórica da luta Norte-Sul e da revolta contra o centralismo. As posições extremaram-se depois do campeonato perdido ao sprint para o Sporting em 1980 e a direção afastou Pedroto e Pinto da Costa, dando origem ao famoso “Verão Quente” do portismo.
Durante algumas semanas, nesse Verão de 1980, havia dois plantéis do FC Porto a fazer a pré-época: um, o oficial, nas Antas, com Hermann Stessl; outro, o dos rebeldes, no Parque da Cidade, com Pedroto. Ao fim de alguns dias, quase todos os jogadores voltaram a casa – Oliveira, por exemplo, nunca o fez, passando pelo FC Penafiel antes de ingressar no Sporting –, mas neste episódio e nos campeonatos ganhos pelo Benfica em 1981 e pelo Sporting em 1982 nasceu a liderança de Pinto da Costa. Este voltou em Abril de 1982 como presidente e no Verão seguinte recuperou Pedroto como treinador. O terceiro período do “Zé do Boné” foi o mais curto e o que teve circunstâncias trágicas, pois foi interrompido pela doença do treinador, que veio a falecer, vítima de cancro, em Janeiro de 1985. Mas a história mostra as razões pelas quais os portistas se identificam tanto com a exposição de Sérgio Conceição: é essa a alma do clube. Os adversários não gostam, como não gostavam de Pedroto e dos seus constantes apelos à revolta, de frases que ficaram na história como o “roubo de catedral” ou o “começamos a perder assim que passamos a ponte da Arrábida”. Mas se há coisa que, em termos de portismo, funciona e funcionará sempre, é a exposição do treinador a este tipo de batalhas, a sua presença à frente das tropas sempre que se adivinha um conflito. Proteger o líder vai contra os fundamentos do portismo.
A renovação de Sérgio Conceição é uma excelente notícia para o FC Porto, porque o treinador já mostrou, nestes quatro anos, que é capaz de fazer equipas competitivas e ganhar contra as probabilidades. E reparo que todos os que a verberam o fazem em nome do que a presença do treinador portista faz ao clima geral do futebol português. É um “mal-educado”, um “mal-formado”, um “bruto”… Só o tempo da história nos dará uma boa resposta a esta questão. Até hoje, mais de 36 anos após a sua morte, ainda não há consenso em relação ao papel de Pedroto. Que ele foi fulcral na formação do grande FC Porto dos últimos 40 anos não há margem para dúvidas. Mas quando se discute se a sua presença à frente do futebol do clube foi boa ou má para o edifício geral do futebol nacional já a doutrina se divide. Foi boa porque criou equipas competitivas e nele nasceu o grande FC Porto? Foi má porque institucionalizou a suspeição como modo de vida de todos os adeptos do jogo em Portugal? Depende sempre do lado da barricada em que se encontra o opinador. Conceição já igualou Pedroto em total de campeonatos ganhos pelo FC Porto (dois), provavelmente nunca o igualará no que toca à importância na história do clube, mas se há coisa da qual tenho a certeza é de que do que ele menos precisa é de “proteção”. Quanto muito, terá de escolher melhor as suas batalhas, fazê-lo de forma mais calculista, mais cínica, e menos explosiva, sanguínea e descontrolada. É essa a lição a retirar dos últimos quatro anos.