Otávio e o contabilismo criativo
O prémio de assinatura de Otávio terá sido uma forma de torturar os números para eles dizerem o que o FC Porto precisava. Mas calhou mal, em dia de lição de moral.
É no mínimo curioso que Pinto da Costa tenha dado uma justíssima alfinetada na lógica que impera no futebol de topo e nas formas que os grandes clubes europeus encontram para fugir às regras do Fair-play Financeiro no mesmo dia em que estalou a polémica acerca do prémio de renovação de contrato de Otávio, cuja explicação mais plausível passa por ter sido uma forma de fugir aos limites impostos ao FC Porto no que respeita à totalidade da sua massa salarial. O clube ainda não deu a sua versão dos factos, mas a coincidência remete-nos para o contabilismo criativo e para o aforismo que nos diz que “se torturarmos os números, eles acabam sempre por confessar o que nós queremos”. No fundo, o futebol não escapa a essa ideia de que o Mundo se divide entre os que criam regras e os que encontram formas de lhes fugir. E no fim vencem os mais espertos.
Disse Pinto da Costa, em entrevista à TSF, concedida a propósito do lucro de 33,4 milhões de euros que a SAD portista registou em 2020/21, que “o FC Porto e outras equipas têm de estar cingidas ao fair-play [financeiro], estão limitadíssimas. E há outras, que por pertencerem a magnatas ou até a países, podem gastar o que quiserem, porque depois simulam um contrato de publicidade pelo que tem de cobrir os gastos e está tudo resolvido”. Ora tem razão total, o presidente do FC Porto. Já várias vezes escrevi sobre o tema, sobre a facilidade que clubes como o Paris Saint-Germain ou o Manchester City têm para mudar o dinheiro de um bolso para o outro dos seus donos, dessa forma fazendo com que o Fair-Play Financeiro seja, ele também, uma treta. E é aqui que a metade do Mundo que cria regras começa a mexer-se. E que tal se criarmos taxas de luxo, espécie de impostos progressivos, autorizando os clubes a gastar mais, mas introduzindo a obrigatoriedade de contribuírem para um fundo comum se e quando passarem determinados limites? E se criarmos um teto salarial independente do nível de receita, impedindo os clubes de ir além desses limites, quer tenham dinheiro para isso ou não?
O Fair-Play Financeiro, uma das regras criadas por essa metade do Mundo, nunca foi uma coisa maravilhosa. Sempre teve defeitos – e a facilidade que os grandes potentados tinham para o enganar era apenas um deles, encarreirando, por exemplo, com a propensão que tinha para defender a manutenção do status quo, impedindo os clubes remediados de arriscar um pouco na gestão e de torpedear a hierarquia formada no topo do futebol europeu. Mas a regra foi criada com o intuito de evitar falências, de prevenir que os clubes gastem o que não podem. Ainda há dias um amigo me pedia para lhe explicar por que é que o FC Barcelona não ficou com Messi, se tinha chegado a acordo com o argentino e até tinha o dinheiro para fazer a operação – não tinha, mas isso já é outra história. E é uma história irrelevante até, porque mesmo que tivesse esse dinheiro, Laporta estaria impedido de inscrever o jogador por ter uma carga salarial correspondente a 105 por cento da receita esperada. Seria mais fácil se, tal como diz Pinto da Costa, o FC Barcelona tivesse um bolso sem fundo, como o Paris Saint-Germain e o Manchester City, e a facilidade de incrementar receitas artificialmente, como é feito por esses clubes-estado. Ou então um contabilista criativo, como parece ser o caso do FC Porto.
É que, na ânsia permanente de escrutínio, que mesmo pesando sempre mais em cima de uns do que de outros, é uma das virtudes do jornalismo, os analistas foram dar com um prémio de assinatura de 14,9 milhões de euros creditado a Otávio pela renovação de contrato. Já se sabia que o jogador estava em fim de contrato, que perdê-lo a custo zero seria um desastre, mas 14,9 milhões de euros parecia demais e, vai daí, houve quem perguntasse por isso ao agente do jogador. “O Otávio não recebeu um euro de prémio de assinatura. Não sei como surgiram aqueles valores. São valores semelhantes, isso sim, aos salários que ele vai auferir se ficar no FC Porto até ao final dos quatro anos de contrato”, explicou Israel Oliveira. O FC Porto ainda não deu a sua versão dos factos, como a não deu acerca dos negócios feitos com o Vitória SC, envolvendo a venda de Francisco Ribeiro por onze milhões e Rafael Pereira por quatro milhões e as compras de Romain Correia por 12 milhões e João Mendes por três milhões (se os somarem, ambos os valores dão 15 milhões...). É possível que a operação com os minhotos – como outra, feita depois com o Sporting, já em 2021/22 – tenha a intenção de incrementar capitais próprios, porque os jogadores formados localmente são incluídos nos ativos com um valor próximo do zero e isso aproxima os clubes de uma falência técnica que é fictícia e os prejudica. Como é possível que a rubrica na qual foi inscrita a verba gasta com Otávio tenha sido alvo de criatividade contabilística, de forma a não aumentar a massa salarial além de um determinado limite.
No fundo, ninguém está a roubar ninguém. Tal como nos casos dos clubes-estado e das suas receitas marteladas, dos tais contratos de publicidade fictícios a que alude Pinto da Costa, o que se passa aqui é que a metade do Mundo que descobre formas de contornar as regras deu prova de vida. Alguém podia era ter avisado o presidente do FC Porto que este era um mau dia para lições de moral.
Urge ver que este Tadeia sem ideia própria e outros tadeias são cartilheiros, isso sim.
Urge rever as regras do fair play financeiro não só devido ao impacto da pandemia mas também devido ao aparecimento de grandes patrões que compram clubes, injectam fortunas e desvirtuem as regras da sã concorrência. Se houvesse transparênci não havia necessidade de "criatividade"...