Otamendi capitão e o futebol mercantil
Só num futebol mercantil é possível ver um jogador capitanear uma equipa com a história do Benfica ao terceiro jogo. E isso não é bom nem mau. É a realidade, como pode ver-se nas palavras de Jesus.
Não vejo nenhum problema extraordinário no facto de, ontem, depois da saída de Pizzi, Otamendi ter capitaneado o Benfica. Mas também não vejo nenhum problema extraordinário no facto de Bernardo Silva ter escrito no Twitter que a vitória frente ao FC Porto lhe tinha sabido “tão bem”. Ou, se quiserem recuar um pouco no tempo, no facto de André Villas-Boas ter dito no mês passado, numa entrevista, que na eventualidade de o Benfica chegar a uma final europeia gostaria de vê-lo perder. Extraordinária mesmo é a capacidade de alguns para a indignação seletiva. Porque, podendo ser debatida no âmbito da clubite, esta questão é muito mais profunda e pode mesmo estar na base do que a oposição quer ver discutido nas próximas eleições do Benfica.
Vamos ser claros. Não é normal que um jogador chegue a capitão do Benfica ao terceiro jogo que faz com a camisola no corpo. Se o fosse teria acontecido mais vezes e a verdade é que não há registo de tal coisa nos tempos mais recentes. E isto leva a reações diferentes dos mais diversos quadrantes. Há os rivais, que destacam o facto de Otamendi ser ex-portista, como quem diz que é preciso passar pelo Dragão para aprender a ser líder. Estão, no fundo, a ser como Bernardo Silva ou André Villas-Boas, a levar o assunto para a temática da clubite. A verdade é que se, em vez de Otamendi, Jorge Jesus tivesse escolhido por exemplo Vertonghen para capitanear a equipa na segunda parte em Poznam, muitos estariam hoje a destacar a incrível capacidade de liderança do belga, que lhe teria permitido assumir a braçadeira pouco depois de chegar. O assunto não seria tão polémico, pois faltar-lhe-ia a dimensão da clubite.
Há também os que acham tudo normal. Para estes, não há sequer tema, como não houve no tweet de Bernardo Silva – mas terá havido, sim, nas palavras de André Villas-Boas, porque Bernardo até estava a falar de um jogo que tinha jogado, ao passo que o ex-treinador e ainda adepto portista hipotizava acerca de um desafio em que seria um mero espectador. Aliás, a este nível, há também quem defenda o contrário – que Villas-Boas podia falar como falou, porque as suas palavras não carregavam o peso e a ferida de um desaire que foi real e sentido, como o encaixado pelo FC Porto em Manchester na quarta-feira. Também aqui falamos de clubite. Só quem nunca foi criança ou adolescente não sabe o gozo que dá poder esfregar na cara de um amigo ou de um colega de trabalho de outra cor clubista estas pequenas vitórias. E só quem continua a sê-lo leva isto verdadeiramente a sério. Sendo compreensível, isso também não contribui em nada para este debate.
O que vale aqui a pena debater são as condições internas que levaram a que, ao terceiro jogo, Otamendi pudesse ostentar a braçadeira de capitão no Benfica. E, por mais que Jorge Jesus tenha sido coerente na justificação que deu – que escolhe sempre um dos novos para o lote de cinco capitães – as palavras do treinador que melhor explicam o assunto até foram as que proferiu acerca do notável contributo de Darwin Nuñez para os 4-2 na Polónia. Disse o treinador do Benfica que, em condições normais, o jovem uruguaio vai ser “a maior venda da história do Benfica”. Jesus é de outra era e não deixou de lamentar a certeza de que vai perder o jogador “em pouco tempo”, mas no fundo acabou a dizer aquilo que mais querem ouvir os adeptos dos dias de hoje: que ele vai render muito dinheiro. Estamos a falar de um nível de debate em que se fazem “campeonatos” de transferências, em que os adeptos esfregam na cara uns dos outros que o clube deles vendeu um jogador por x enquanto o rival só conseguiu vender por y.
Otamendi só pôde ser capitão do Benfica ao terceiro jogo porque vivemos tempos de futebol indústria, negócio, mercantilista – chamem-lhe o que quiserem… E isto não é bom nem é mau. É a realidade de hoje. Porque não é possível vibrar com os 126 milhões da transferência de João Félix e depois lamentar a falta de referências internas que permite um despertar tão violento ao fantasma de Cosme Damião. O verdadeiro debate não é se Otamendi é melhor capitão por ter passado no Dragão ou se o Benfica está tão vazio de referências que um ex-portista o capitaneia ao terceiro jogo. O verdadeiro debate é se é possível ter sucesso no futebol nacional e internacional sem entrar neste jogo que leva os melhores daqui cedo demais a troco de muito dinheiro e da possibilidade de adquirir outros, os que podem vir a ser os melhores daqui a algum tempo, como Darwin, ou os que já o foram em tempos idos e dessa altura guardam o estatuto de líderes para poderem ser capitães prematuros, como Otamendi. É um pouco isso que vai a oposição a Luís Filipe Vieira quer ver debatido nas eleições do Benfica.