Os perigos do capital no futebol
John Textor continua a querer adquirir uma posição num clube português e no Brasil diz-se que é o FC Porto. Em que pé estamos no futebol perante a investida do grande capital? E o que podemos fazer?
O anúncio ontem feito pelo norte-americano John Textor de que continua a querer investir num clube português, ainda que com uma posição minoritária, deve levar-nos a refletir sobre as razões que estes milionários encontram para entrar no capital de clubes de futebol um pouco por todo o Mundo, na intervenção que devia ter a FIFA, para assegurar a integridade das competições, e naquilo que deve ser – ou não – a proteção legal dos nossos clubes contra as entradas de capital à bruta, face ao risco de as saídas serem depois ainda mais repentinas. São três questões diferentes, ainda que acabem por tocar-se umas às outras. E para o caso é indiferente se Textor compra as ações do Benfica que Luís Filipe Vieira foi canalizando para – ou permitindo que seguissem o caminho de... – José António dos Santos, se entra no capital do FC Porto, como dizem os brasileiros que está para acontecer, se fica com os VMOCs do Sporting ou se faz um take-over de qualquer outro clube. O fundamental, aqui, é que o norte-americano, que como pode ver aqui também é dono de parte do Crystal Palace, anunciou que o negócio “pode ajudar o Botafogo”. Assim, às claras. E isso é que devia começar a fazer soar as campainhas de alarme.
Tenho vindo a publicar, à razão de um por semana, artigos sobre os Donos da Bola no futebol mundial. Além do primeiro, que foi sobre a Premier League, cujo link estava no parágrafo anterior, já aqui estão mais quatro, sobre a Serie A italiana, a Ligue 1 francesa, a Bundesliga alemã e a La Liga espanhola. Este mapeamento é a forma de estabelecer pontos de contacto entre os mais diversos clubes e países, pois permite encontrar uma série de cromos repetidos, e serve para encontrar as mais diversas motivações. Por que razão há gente a meter milhões de euros em clubes de futebol? Se respondeu: “porque os tem”, começa desde logo por estar enganado, como perceberá se vir que clubes gigantescos, como o Manchester United ou o Milan, foram comprados através do crédito em fundos de capital de risco. E isso, se por um lado tem cortado as vazas ao maior clube inglês, cuja receita vai em grande parte para cumprir o serviço da dívida contraída pelos Glazer, por outro deixou apeados os chineses que se abalançaram à compra do Milan, precisamente por não conseguirem satisfazer as prestações do crédito. A resposta, nestes dois casos, é mais simples e ao mesmo tempo mais complexa: para ganhar dinheiro.
O lucro é uma das motivações mais comuns na compra de clubes de futebol. Mas não é, de todo, a única. Há quem compre o clube do coração para ajudar. Há quem compre um clube para ganhar influência, seja ela social ou política – e em Itália isso é o pão nosso de cada dia desde que muitos clubes deixaram as famílias tradicionais, de que praticamente já só restam os Agnelli. Há quem o faça para consolidar essa mesma influência – e isso já é mais típico do Leste Europeu, como pode ver no caso do Sheriff Tiraspol, que contei aqui. Há quem, como Abramovich, tenha tanto dinheiro e tão pouco préstimo para lhe dar, que compra um clube simplesmente pela excitação, aceitando perdas mastodônticas. Há quem compre em baixa para mais tarde vender em alta, como Gérard Lopez, o acionista maioritário do Boavista, que vai encontrando na especulação clubística uma forma de vida e de ganhar dinheiro – o que é diferente da busca do lucro, que pressupõe uma operação continuada. Há quem, como os estados do Médio Oriente que mandam no Paris Saint-Germain, no Newcastle United e no Manchester City, procure no grande futebol uma forma de legitimação no palco internacional, assumindo os custos da gestão futebolística como uma espécie de marketing de estado. Haverá, seguramente, quem se sirva das atividades nem sempre bem escrutinadas que o jogo propicia, para fazer lavagem de dinheiro ganho de forma ilícita. E começa a haver quem se dedique a jogar Monopólio com o futebol, comprando uma rua no bairro azul, outra no verde, outra no vermelho e por aí a fora.
Os grandes conglomerados de clubes que começam a aparecer – e que John Textor assume sem qualquer problema –, de que o grupo do Manchester City é o mais completo exemplo à data, são um problema para quem procura salvaguardar as normais regras da concorrência. São regras próprias do sistema capitalista, é verdade, o que torna difícil a intervenção legal – se eu posso comprar fábricas de sapatos em todo o Mundo, por que razão não hei-de poder adquirir clubes de futebol? Mas, tal como já defendi no dia em que começou a falar-se numa compra do CD Tondela por parte do Flamengo, são entraves à competição sã. É evidente que a FIFA precisa de atacar esta questão e de encontrar, dentro das suas competições e dos regimes jurídicos dos países que nelas pretendem entrar, uma fórmula que impeça este tipo de relações de privilégio. Até porque aqui a questão não é apenas a de eventualmente duas equipas do mesmo dono virem a encontrar-se numa competição internacional: há toda uma vasta gama de possibilidades para subverter negócios através da intromissão de clubes que, sendo de países diferentes, estão debaixo da mesma influência. O que nos leva ao nosso atual regime de propriedade. Devemos proteger os nossos clubes deste capitalismo mais selvagem, como fazem os alemães, ou permitir que sejam os clubes a decidir, por si próprios, se abrem ou não o seu capital a grandes investidores e em que medida o fazem? A questão não é nada pacífica: os próprios alemães, que vivem debaixo da regra dos 50+1 – os clubes têm de ser donos de 50 por cento das suas ações, mais uma, mantendo o controlo da gestão –, começam a encontrar nesta limitação a razão fundamental para estarem a perder competitividade para os ingleses no plano internacional.
Em Portugal, para já, nos três grandes, só é possível entrar com posições minoritárias. E isso, naturalmente, pode ser uma boa ideia no plano da gestão para quem quer, sobretudo, achar uma porta de entrada no mercado europeu para jogadores que estão na América do Sul. É essa, possivelmente, a ideia de Textor: injetar aqui algum capital, de forma a servir-se da sua influência para encontrar uma espécie de placa giratória que permita a “aclimatação” aos jogadores que o Botafogo quer vender, mas que ainda não satisfazem as necessidades de uma Premier League. Como seria essa a ideia dos responsáveis do Flamengo quando se falou na compra da SAD do CD Tondela. A entrada dos clubes neste jogo do capital é perigosa e leva-me a defender a regra alemã dos 50+1, ainda que depois seja sensível às desigualdades promovidas pelo facto de, no plano internacional, haver quem se sirva desse capital para se tornar mais e mais competitivo. É por isso que o segredo, aqui, passa pelo escrutínio, por um maior cuidado – que tem de ser global – com quem se deixa entrar no jogo. E nisto, o futebol está particularmente vulnerável, como pode perceber-se por um par de situações verificadas em duas extraordinárias séries de ficção: “Billions” e “Succession”, ambas disponíveis na HBO.
Em “Billions”, o bilionário Bobby Axelrod tenta por todas as maneiras, algumas delas ilegais, comprar uma equipa de futebol americano, mas esbarra sempre no veto da NFL, a Liga que gere a modalidade. Em “Succession”, Roman, um dos filhos do bilionário Logan Roy, quer fazer um agrado ao pai, de forma a subir na escala dos preferidos na corrida à sucessão. Para tal, resolve comprar aquela que achava que era a equipa de futebol favorita do patriarca da família para lha oferecer no aniversário. Vai à Escócia e, num estalar de dedos, compra o Heart of Midlothian, apenas para ouvir da boca do pai que sempre tinha sido adepto do Hibernian, o rival católico do Hearts na cidade de Edimburgo. A situação vale muito a pena pelo peculiar discurso motivacional que Roman faz em frente à equipa do Hearts, mas sobretudo para se perceber quão fácil é comprar uma equipa de futebol em condições de jogar as competições europeias. Basicamente, basta ter dinheiro. Porque o escrutínio é nulo.
Tenho boa impressão da figura pública de John Textor. Naturalmente tudo o que nos aparece na Internet é escrutinado (e controlado) mas não vejo paralelo com algumas situações citadas. Steve Nash também se associou ao dono dos Phoenix Suns para adquirir uma equipa espanhola. É um assunto que não se esgota e é muito interessante. Em Portugal existem inúmeros clubes com investidores estrangeiros. Mas encaro isso como natural, algo que simplesmente é e vai ser assim. Bom dia de aniversário!
Encontro dois perigos!
Uma futura situação como a do Belenenses ou a bipolarização do futebol em que só quem tem dinheiro conseguirá vencer