Ora digam lá agora que isto é pior com Ronaldo
Quando o CR7 se for, os mesmos que agora dizem que a equipa piora com ele vão lamentar-se por não terem um Ronaldo a dar expressão goleadora ao futebol da equipa.
Ainda me lembro do orgulho que me encheu o peito quando, no Europeu de 1996, Valdano – que naquela altura era assim uma espécie de guru para mim – escreveu no El País que “jogar bem” era jogar como Portugal. Era a seleção a que, após o empate inicial contra a Dinamarca, o meu companheiro Manuel Queiroz chamou “uma equipa de bilhar livre”, a seleção a que muitos chegaram a referir-se como campeã mundial do futebol sem balizas. E depois? Depois aconteceu Ronaldo. O bis do capitão no jogo de ontem contra a Suécia, no seu palco predileto de Solna, acaba por ser visto como algo normal – afinal são já 101 os golos que ele fez com a camisola da seleção. E é por todos termos sempre mais atenção às anomalias que reparamos muito mais nas ocasiões em que ele não está e a equipa joga bem, como sucedeu no sábado anterior contra a Croácia, do que naquelas em que a equipa faz o que tem de fazer e Ronaldo resolve.
Portugal não fez um jogo tão vistoso como no Dragão e, sim, a esse fator não são alheias as alterações feitas por Fernando Santos para encaixar Ronaldo. Com o capitão a beneficiar de salvo-conduto para andar por onde quisesse no ataque, porque ele é forte não como ponta-de-lança mas a surgir no corredor central apenas na altura de finalizar, a seleção nacional teve de encostar Bruno Fernandes à esquerda, tirando-lhe influência no jogo ofensivo da equipa, de maneira a assegurar o preenchimento do corredor do ponto de vista defensivo. Ao mesmo tempo, João Félix teve mais dificuldades para encaixar nas movimentações de Ronaldo do que as que tivera com o bastante mais previsível Diogo Jota – que ainda por cima procurava mais o espaço, enquanto que o capitão pede mais bola no pé. A saída prematura de Bernardo Silva fez parte do que faltava para secar a criatividade atacante de uma equipa que no sábado dependera muito da inspiração destes três homens – o restante teve a ver com a quebra de qualidade das exibições dos dois laterais, menos protegidos do que contra a Croácia e por isso mesmo mais inibidos do ponto de vista atacante.
Agora partir daqui para dizer que Portugal joga melhor sem Ronaldo é um passo demasiado grande para a perna. Sim: a presença de Ronaldo condiciona todo o coletivo. Mas a questão é que depois o capitão chega e resolve. Ontem, além de dois golaços – um livre magistral a acabar a primeira parte e uma finalização em arco, a encobrir o guarda-redes desde a entrada da meia-lua, a matar o jogo – teve ainda mais duas ocasiões que bem podiam tê-lo levado ao póquer, não tivesse Olsen arrancado duas defesas extraordinárias a mais dois remates do pé direito do atacante português. A questão fundamental aqui não é a de se perceber se a equipa joga melhor ou pior com Ronaldo em campo – se a bitola de apreciação for o tal texto de Valdano, provavelmente joga pior, mas também creio que fica mais perto de ganhar do que alguma vez esteve aquela fabulosa equipa de 1996. Aqui, a questão fundamental, por isso, é a de se perceber se é possível conjugar o sentido mais concreto de Ronaldo com a dimensão estética que alguns destes jogadores já vão pedindo. E isso transporta-nos para questões que não têm a ver com qualidade.
São questões táticas, na medida em que está em causa a articulação das pedras e até, por vezes, uma espécie de gambito de algumas unidades. Mas são também questões de liderança – pois há que assegurar que toda a gente se sente bem para expressar as suas qualidades em lugar de estar a pensar naquilo de que poderá beneficiar a equipa se Ronaldo puder expressar as dele. Aos 35 anos do craque, já será provavelmente demasiado tarde para a equipa resolver esta equação que sempre a inibiu desde a estreia do seu atual capitão, em 2003. Infelizmente, Ronaldo já apareceu tarde demais para poder jogar de forma duradoura com Paulo Sousa, Figo ou Rui Costa – apanhou-lhes o epílogo. E surgiu demasiado cedo para poder ser associado durante muito tempo a Bernardo Silva, Bruno Fernandes e João Félix – estes serão o futuro da seleção quando Ronaldo a deixar. Aí, sim, é quase certo que Portugal voltará ao paradigma anterior. E que os que agora dizem à boca cheia que a equipa joga pior com Ronaldo nessa altura vão lamentar a retirada do capitão. “Ah, se ao menos tivéssemos um finalizador como Ronaldo para dar expressão ao belíssimo futebol desta equipa”, lamentar-se-ão.