O vírus está como os árbitros
Os casos de Sporar e Nuno Mendes já motivaram troca de acusações entre FC Porto e Sporting, mas o melhor seria que servissem para a Liga decidir e centralizar os processos relativos a testes Covid19.
A polémica ontem nascida entre Sporting e FC Porto acerca dos casos, sejam eles “positivos” ou “falsos positivos”, de Nuno Mendes e Sporar, é muito mais do que uma troca de acusações ou uma amplificação de suspeitas de teorias da conspiração que tão habituais são no futebol nacional. O vírus está para a sociedade portuguesa como os especialistas de arbitragem para o futebol – aparentemente, tal como no dia a seguir aos jogos é possível recorrer às duas mãos-cheias de ex-árbitros que dão opinião sobre os lances polémicos na comunicação social e encontrar sempre uma que nos dê razão, também é possível encontrar laboratórios que dizem uma coisa e outros que atestam o seu contrário. Mas para se manter a sanidade da competição há que assegurar uma coisa muito simples, que já reclamo desde o reinício da prova: a decisão tem de ser centralizada.
Depois de vermos o Presidente da República irritado porque ninguém era capaz de lhe dizer se estava positivo ou negativo, tendo testes contraditórios, por que é que, antes de um jogo, cada clube não poderá sacar de um laboratório que lhe dê mais jeito para apresentar testes negativos dos seus jogadores. Não questiono a coisa em termos de saúde pública, que desde que os laboratórios sejam certificados, de facto, não deve haver nada que limite um cidadão que seja permitido a outro – e Marcelo Rebelo de Sousa anda por aí, em campanha eleitoral. Trazer esse argumento para a discussão, como fez o FC Porto, é puramente demagógico. Falo, isso sim, da integridade da competição. Se os testes de Nuno Mendes e Sporar, feitos pelo laboratório que tem acordo de parceria com a Liga – a Unilabs – foram “falsos positivos”, o Sporting tem toda a razão para contestar a verdade desportiva que o levou a desperdiçar dois pontos sem poder contar com os jogadores. Deve até levar essa luta o mais longe possível. Mas não devia ser-lhe permitido levar os jogadores a jogo com base em testes feitos noutro local. E, aparentemente, é. O que, podendo até ser justo, traz para as provas um manto de suspeição que não é bem-vindo.
Nada é claro quando se trata de Covid19. Admito até que alguns defendam que não tem de ser, por se tratar de uma situação de saúde, por natureza privada. Mas discordo. Porque a única forma de lidar com o tema quando se trata de futebol profissional é ser absolutamente transparente. Esta polémica traz à memória outras duas, ainda por esclarecer: a que nasceu aquando da assinatura da parceria entre a Liga e a Unilabs, em Maio, e a gerada pelas enigmáticas palavras de Tiago Pinto, à partida para Roma, depois de deixar o Benfica. Logo em Maio, confrontada com vários resultados errados no Vitória SC e no FC Famalicão, a Liga emitiu um comunicado afastando suspeitas de favorecimento à Unilabs, em cuja equipa gestora estava o filho do presidente da Federação Portuguesa de Futebol, e estipulando que o protocolo então assinado não pressupunha exclusividade. “Os clubes são livres de realizar os testes no laboratório que entenderem mais adequado, desde que respeitem os critérios e as exigências definidos pelas autoridades de saúde”, lê-se, no ponto 4. Antes, no ponto 3, diz-se mesmo que, além de não receber qualquer receita dos testes, “a Liga não é informada pelo laboratório acerca dos resultados dos testes”.
E é neste liberalismo excessivo que está o problema. Já o denunciei no reinício das provas, quando se fez depender o adiamento de jogos – e o não-adiamento de outros – da disposição dos delegados de saúde. Porque isso permite a criação de situações em que uns podem ser favorecidos e outros prejudicados. A decisão, também aí, devia ser centralizada e obedecer a critérios absolutamente objetivos. Volto a denunciá-lo agora, que este caso traz à tona aquilo que disse Tiago Pinto, ex-diretor geral do Benfica, antes de sair para a AS Roma. “Há clubes que escondem”, afirmou, não lhe sendo na altura perguntado se se referia a casos ou apenas à identidade dos infetados. Seja uma coisa ou a outra, no entanto, parece-me inadmissível. A primeira é gravíssima em termos de cidadania – admitir que haja clubes que conscientemente aproveitem esta liberdade de ação para levar a jogo jogadores infetados, colocando outros em risco, é o fim da civilização como a conhecemos. A segunda é defensável à luz dos direitos de cidadania – ninguém tem de ser publicamente reconhecido como doente disto ou daquilo – mas não da transparência de um campeonato exige.
Quer mais logo vão ou não a jogo, espero que Sporar e Nuno Mendes tenham servido pelo menos para alertar as consciências acerca deste problema.