O vício do mercado
Os clubes portugueses estão na penúria, mesmo tendo sido os que mais lucraram com transferências nos últimos cinco anos. O problema é que vemos o mercado como um objetivo e não uma consequência.
O facto de Ajax e Benfica se defrontarem hoje, em partida que definirá o nome do derradeiro representante vindo de fora das Big Five na edição deste ano da Liga dos Campeões, traz nova relevância ao estudo que o Observatório do Futebol divulgou ontem – e que pode consultar aqui –, acerca da balança de transações internacionais das maiores Ligas do Mundo desde 2017. Nele ficámos a saber que os clubes da Liga Portuguesa foram, se vistos em conjunto, os que mais lucraram em todo o Mundo nos últimos cinco anos: 1.147 milhões de euros entre jogadores vendidos e comprados. E que, a seguir aos brasileiros, os neerlandeses surgem logo em terceiro lugar, com 742 milhões de euros de lucro. É muito dinheiro, a tornar ainda mais incompreensíveis as dificuldades financeiras vividas pelos clubes em Portugal, sobretudo se comparadas com o clima mais contido dos Países Baixos.
Estamos aqui a falar de muito dinheiro. Em média, por ano, nas últimas cinco épocas, deram entrada no futebol português mais de 300 milhões de euros, para um volume global de receita com transferências de 1.674 milhões. A este valor subtraem-se os 527 milhões gastos por nós em transferências internacionais para se chegar a um lucro avassalador, que devia chegar e sobrar para que o futebol fosse uma atividade viável. Os valores dos clubes brasileiros – 1.286 milhões de euros de vendas e 265 milhões de compras – poderão explicar-se com uma maior distância face aos centros de decisão: no Brasil há mais talento, logo à partida porque há mais gente, mas esse talento está mais longe e vive e treina em circunstâncias muito diferenciadas, o que deixa os clubes-investidores com mais receio de contratar ali, preferindo antes deixar que as Ligas europeias periféricas se antecipem e assumam o risco. Pagam mais depois, mas têm um maior grau de certeza. Até aqui a coisa faz sentido e pode até servir de explicação para a cada vez maior aposta dos clubes brasileiros em treinadores europeus, vários vindos de Portugal: tentarão assim tornar a sua realidade mais aproximada à europeia, de forma a evitarem a necessidade de intromissão um intermediário nos negócios.
É, igualmente, fácil de entender as razões que levam os neerlandeses a aparecer em terceiro lugar nesta tabela. Os clubes dos Países Baixos tiveram 70 por cento do volume de vendas dos portugueses (1.173 milhões de euros) e até gastaram proporcionalmente mais, com 81 por cento (431 milhões de euros). Qual será então a razão principal a explicar as diferenças entre a sanidade financeira do futebol neerlandês e a dívida galopante do setor em Portugal? – e poderá ficar com uma ideia mais aproximada das diferenças lá mais para o fim da semana, quando eu publicar o próximo capítulo da série Donos da Bola, que vai ser dedicado aos Países Baixos. Se pensou na escola do Ajax e num maior aproveitamento da formação, desengane-se, porque nesse particular o futebol neerlandês é extremamente parecido com o português. Duas das cinco maiores transferências feitas pelo futebol neerlandês nestes cinco anos foram de jogadores contratados na América Latina: o colombiano Davinson Sánchez (ex-Atlético Nacional), que o Ajax vendeu ao Tottenham em 2017 por 42 milhões de euros e o mexicano Hirving Lozano (ex-Pachuca), que o PSV Eindhoven mandou para o SSC Nápoles em 2019 por 50 milhões. Da mesma forma, duas das cinco maiores transferências operadas pelo futebol português para o estrangeiro no mesmo período foram de jogadores primeiro importados: o brasileiro Éder Militão (ex-São Paulo FC), que o FC Porto vendeu ao Real Madrid em 2019 por 50 milhões, e o colombiano Luis Díaz (ex-Junior Barranquilla), recentemente transferido pelo mesmo FC Porto para o Liverpool FC, por 45 milhões.
O recurso a super-agentes – mais Mino Raiola nos clubes holandeses, mais Jorge Mendes nos portugueses – explica-se com a necessidade de imposição aos grandes mercados. Apesar de os números sugerirem o contrário, não é fácil entrar naquele clube restrito das transferências mais caras do Mundo. Em 2021/22, por exemplo, das dez transferências mais caras das duas janelas de mercado, nove foram ou internas ou entre clubes das Big Five, que resolveram mudar de país dentro daquele clube restrito – por alguma razão as cinco grandes Ligas são as únicas a apresentar no citado estudo do Observatório do Futebol um total de vendas superior a 2.000 milhões de euros e Portugal aparece nesse particular em sexto lugar. A exceção a essa regra durante a época em curso foi a passagem de Luís Díaz do FC Porto para o Liverpool FC. Em 2020/21, aconteceu exatamente a mesma coisa, sendo a exceção a venda de Rúben Dias do Benfica para o Manchester City. E é nesta parte do negócio que as coisas ficam mais turvas. Porque a dependência dos grandes clubes portugueses de um modelo de negócio fundado na exportação de talentos fá-los ficar pendentes das boas-vontades de quem melhor opera no mercado e, por isso, mais vulneráveis quando se trata de atribuir comissões ou facilitar outros negócios provavelmente não tão necessários mas vistos como um mal menor. E isso é uma porta permanentemente aberta e um convite a situações ainda menos claras e transparentes, como a possibilidade de enriquecimento ilícito de que anda no futebol – dirigentes de clubes – às custas do empobrecimento dos clubes propriamente ditos.
Não sendo um profundo conhecedor do futebol neerlandês, não me custa admitir que a maior diferença entre a situação sólida – de que o Feyenoord foi exceção, entretanto ultrapassada – vivida pelos clubes nos Países Baixos e a penúria constantemente experimentada pelos clubes em Portugal tem raízes profundas no vício do mercado e nos desvios e tentações a que ele convida. Não formamos pior do que os neerlandeses, não temos pior scouting, não damos menor visibilidade aos nossos talentos e não somos piores a vendê-los lá fora. Estamos mais perto da falência porque no ato de gerir clubes nos convencemos de que o mercado é um meio e não um fim, que é um objetivo e não uma consequência. E isso é fatal, porque nos deixa dependentes dele e dos seus vícios.
Nunca percebi porque os clubes portugueses não apostam nos nossos mercados - Brasil (já foi mais), Moçambique, Angola, Cabo Verde....