O VAR e o mito da infalibilidade
O grande problema do VAR é que permitiu a associação de um mito de infalibilidade às arbitragens, que serão sempre discutíveis, porque envolvem homens. Análise aos contributos deste fim de semana.
Não vou aqui dissecar os lances polémicos de arbitragem do fim-de-semana – esse trabalho vai ficar para o Futebol de Verdade de hoje, às 12h30, em todas as minhas redes sociais. Vou, isso sim, desenvolver e ao mesmo tempo afinar um raciocínio que já tinha deixado no direto de sexta-feira passada: na altura, bem antes das polémicas, portanto, disse que em Portugal há uma utilização excessiva do VAR e isso é verdade em muitas ocasiões. Noutras, porém, já o uso do VAR peca por defeito. O grande problema do VAR é que permitiu a associação de um mito de infalibilidade às arbitragens, que serão sempre discutíveis, quanto mais não seja porque envolvem homens. Os que apitam, os que estão por trás dos monitores na Cidade do Futebol, os que os dirigem e os que os contestam. E, se calhar mais importantes ainda, os que jogam e que conhecem todas as manhas para enganar todos os outros. São estes que podem ajudar a melhorar o setor.
Não houve grande novidade na reação de Frederico Varandas ao final escaldante do jogo entre FC Famalicão e Sporting, no sábado. No fundo, o presidente do Sporting foi repetir os mesmos argumentos que já tinha utilizado por alturas do Sporting-FC Porto, outro jogo em que o VAR deliberou contra os seus interesses. Esticou-se, como já se tinha esticado antes, na batalha que mantém com os responsáveis do FC Porto e do Benfica, que também se esticam na tentativa de colar uma imagem de prejudicado às suas cores – e, no limite, de condicionar arbitragens futuras. Houve uso excessivo do VAR nos dois jogos de que se queixa Varandas? Talvez. Tanto como terá havido uso defeituoso no Sporting-Moreirense, por exemplo, e na validação do primeiro golo de Pedro Gonçalves. Por envolverem factos que só uma abordagem contra-factual poderia esclarecer – eis uma especialidade dos que se entretêm em discussões infindáveis nas caixas de comentários das redes sociais – não me é possível vir dizer se alguma vez aquelas decisões seriam tomadas se as cores em jogo fossem outras. Prefiro comentar factos que aconteceram e não aqueles que poderiam ter acontecido se em campo estivesse fulano ou sicrano.
Ora a esse respeito, mesmo baralhando a noção de contacto natural com da retroatividade da ação do VAR, foi muito mais valiosa a contribuição dada ao debate pela intervenção de Jorge Jesus, ontem, no seguimento da sofrida vitória do Benfica sobre o FC Paços de Ferreira, ou até pelo membro não identificado do Conselho de Arbitragem que no sábado à noite, a seguir à reação de Varandas, entrou num frenesi comunicacional, a ligar para as redações dos jornais todos para dizer que o órgão máximo do setor validava a atuação de Artur Soares Dias, que foi o VAR de serviço ao jogo de Famalicão. Isso, sim, foi inédito. Mesmo que alguém achasse que, de repente, na pressão do fecho, os jornalistas tinham tido a (boa) ideia de ligar para o Conselho de Arbitragem – e sobretudo que em todas as redações alguém tinha tido essa ideia –, mesmo sabendo que este raramente comenta estas coisas, muito menos em cima do acontecimento, a redação da notícia do Record não deixa dúvidas. Em vez de cair no “Record pode garantir que” ou “Record sabe que”, o jornalista que escreveu disse que “a apreciação do CA” foi “oficiosa mas transmitida de imediato à generalidade da imprensa”. E isto, sim, merecia que Varandas comentasse. Porque aconteceu e, que me lembre, nunca tinha acontecido.
O resto, mais uma vez, saiu da boca de um treinador – e os treinadores ainda são melhores a pensar futebol que os presidentes, diretores de comunicação ou membros não identificados do Conselho de Arbitragem. Sobretudo quando um golo no último lance do jogo lhes salva os três pontos e lhes dá a tranquilidade para refletir em coisas mais estruturantes, pois podem vir a ter influência no protocolo. Mesmo tendo baralhado o conceito de contacto natural com o de retroatividade da ação do VAR, Jesus foi certeiro numa coisa: “o VAR não sabe o que é o contacto normal de um jogo de futebol”. E, pior, as suas decisões depois são comentadas até à insanidade por quem percebe ainda menos do assunto, antes se centrando na defesa das suas cores em cima de repetições incessantes de lances. A questão da retroatividade – o VAR deve escrutinar todo o lance de golo até ao início da posse e Jesus acha que só devem ser revistas “as últimas três ações” – é interessante, ainda que haja quem queira até puxar a fita ainda mais atrás: veja-se a discussão em torno da falta de Gabriel que o árbitro do Marítimo-Benfica assinalou ao contrário e gerou o segundo golo do Benfica, mas que o VAR, por protocolo, não podia reverter, pois respeitava a uma jogada anterior. Nesse aspeto, contudo, acho que o protocolo está bem, pois o início da posse, mesmo que seja, como diz Jesus, “105 metros lá atrás”, e mesmo que dê tempo para a equipa contrária reagir, pode ter gerado uma vantagem irregular e acabar por levar à marcação de um golo.
Já sou mais sensível ao segundo tema lançado pelo treinador do Benfica: a noção de contacto normal e anormal. É aqui que o VAR está mais longe da infalibilidade que muitos pensaram que ele ia trazer à arbitragem. Porque contactos que num dia os árbitros acham naturais, por lhes faltar intensidade, noutro já acham faltosos, por lhes reconhecerem a tal força. E até acrescento outra coisa: há contactos que são meros frutos da manhosice de quem acaba por ser beneficiado com a marcação da falta. E, mesmo não sendo necessário ter sido craque da bola ou jogador profissional para o reconhecer, até eu fico frequentemente espantado com tanta credulidade da parte de quem apita ou vídeo-arbitra. Jesus falou das reuniões em Nyon, nas quais a UEFA ouve os treinadores, e eu deixo aqui duas sugestões para o protocolo do VAR.
Uma já me cansei de a enunciar: que os áudios das conversas entre árbitro de campo e vídeo-árbitro sejam disponibilizados na transmissão televisiva dos jogos, como se faz, por exemplo, no rugby. Além de humanizar a tarefa, isso viria permitir às pessoas compreender melhor as decisões tomadas. Na segunda pensei ontem, enquanto ouvia Jorge Jesus: faria sentido que, ao lado do VAR, se sentasse um ex-jogador, capaz de aconselhar melhor o árbitro acerca do que é contacto natural ou de quem provoca esse contacto. Ou, pelo menos, para evitar que fossem lançadas suspeitas em função da identidade desse ex-jogador ou dos clubes ao serviço dos quais ele terá tentado enganar os árbitros no passado, os árbitros de elite fossem sujeitos a cursos intensivos ministrados por ex-futebolistas de topo, para melhorarem a capacidade de distinguir o que é do que foi inventado. Todos ficaríamos a ganhar.