O valor do treino
Mudar a estrutura de uma equipa para um jogo pode até resultar, mas não deixa de ser uma insanidade, porque desvaloriza por completo o que ela faz no treino, no seu dia-a-dia de trabalho.
O FC Porto recebe hoje o Inter Milão (20h, Eleven Sports 1) no jogo mais importante da época, porque definirá se a equipa de Sérgio Conceição voltará a estar entre os oito quarto-finalistas da Liga dos Campeões, dois anos depois, ou se serão os italianos que lá chegarão pela primeira vez desde 2011. A importância, até financeira, da partida e a conhecida vocação camaleónica das equipas do FC Porto sob as ordens deste treinador têm levado à proliferação de ideias acerca da melhor forma de contrariar o poderio dos italianos, nomeadamente dos seus dois avançados, porque seja qual for a dupla chamada ao relvado de início por Simone Inzaghi é mais ou menos seguro que ao largo dos 90 minutos jogarão os três, Dzeko, Lautaro e Lukaku. Conceição é um técnico muito aberto nestas coisas e ainda ontem explicou, no regresso às conferências de imprensa, que tudo depende do gosto de cada um. “Gostamos mais de fazer 70 passes para desmontar o adversário ou de chegar à baliza em apenas dois ou três? Para mim pode ser muito bonita esta [última] forma, para outros há-de-ser a outra, que a mim me dá mais sono”, disse, antes de afirmar que “seja com bombo, violino, ópera ou concertina”, o que importa é ganhar. E é aqui que convém passar as coisas do nível genérico ao específico. Até pelas ausências de João Mário, lesionado, e Otávio, castigado, e pela constatação de que Pepê não pode fazer o papel dos dois, ser ao mesmo tempo lateral direito e terceiro médio, pode o FC Porto surpreender taticamente, aparecer com uma estrutura menos habitual, por exemplo com três centrais? Eu acho que não. E não por uma razão muito simples: o valor do treino. Jogar de uma forma que não se treinou não é arrojo, é insanidade pura – e às vezes até resulta, é verdade, mas não deixa de ser menos insano por isso. E nem o camaleónico Conceição consegue treinar com eficácia uma nova estrutura para um jogo. O que o FC Porto de Conceição mais muda são dinâmicas, não tanto a estrutura. Esta época, por exemplo, foi marcada por uma nova forma de saída, com três duplas a par à frente dos centrais, quase por andares, ficando as alas para os laterais. Ou pela forma como a equipa se colocava depois, já no meio-campo adversário, com os avançados a partirem das alas, permitindo a retração do ponta-de-lança para a posição 10. Ou ainda, defensivamente, como em certos momentos do jogo, especialmente contra equipas que jogam em 3x4x3 ou 3x5x2, Uribe se inseria entre os centrais, permitindo que a equipa mantivesse a linha de quatro atrás mesmo que um dos laterais – o do lado da bola – avançasse ao encontro do ala adversário. O FC Porto fez isto contra o Sporting no Dragão, na Liga, mas desistiu de o fazer a meio da final da Taça da Liga e já não o fez em Alvalade, por exemplo. Porque aí há também que ter em conta as dinâmicas do adversário. Essas alterações nas dinâmicas esperam-se sempre do FC Porto. Agora uma revolução na estrutura seria, para mim, uma surpresa. Quase uma insanidade. Que até podia resultar, mas não deixaria por isso de ser uma insanidade, sobretudo porque seria estar a desvalorizar o trabalho do dia-a-dia, a colocar em campo no jogo mais importante do ano algo que não se treinou devidamente.
É o dinheiro, senhor. Em entrevista à Gazzetta dello Sport, Pinto da Costa rejuvenesceu. Não só elegeu a vitória (1-0) em San Siro sobre o Milan, em 1979, a do golaço de Duda, como o jogo que recorda com mais saudade contra equipas italianas – foi o primeiro e não há alegria como a primeira – como pôde enaltecer o papel de gente do tempo dele, como Berlusconi, Moratti ou Agnelli. Foram grandes presidentes no Milan, no Inter e na Juventus, é verdade, ainda que talvez fosse mais correto chamar-lhes donos, que para presidir estavam lá outros, os Gallianis e os Bonipertis. Era o tempo dos “cavalieri”, gente em volta da qual os jornais italianos sempre construíram uma aura que se exportava. A questão é que, confrontado com o desvanecer dos tempos áureos do futebol italiano, o presidente do FC Porto justificou-o com o desaparecimento de dirigentes do gabarito dos que por lá andavam nessa altura, em que os italianos ganhavam provas europeias e a Serie A encabeçava o alinhamento dos resumos do futebol internacional na TV portuguesa. “Agora, o poder transferiu-se para Inglaterra e os vossos clubes perderam relevância, também porque já não são geridos por pessoas com a experiência das que citei”, disse. Entende-se a ideia, de valorização da longevidade, um fenómeno do qual o próprio Pinto da Costa será, provavelmente, campeão do Mundo. Mas, assim de repente, a mandar em clubes ingleses, lembro-me de exatamente zero líderes com esse tipo de experiência. Haja alguém que o diga: é o dinheiro, senhor. O que mudou foi o dinheiro, que há 30 anos estava em Itália e agora está em Inglaterra.
Mais que um jogo. O Eintracht Frankfurt, que no ano passado encheu o Camp Nou de adeptos através de métodos menos convencionais, fazendo deles uma força importante para a vitória que afastou o FC Barcelona da Liga Europa, renunciou agora a levar apoiantes a Nápoles para o jogo da segunda mão dos oitavos-de-final da Liga dos Campeões. A razão para a desistência foi uma decisão das autoridades públicas de Nápoles. Em resposta aos confrontos verificados na primeira mão – e que não se restringiram ao estádio – foi primeiro decretado pelo Comité para a Segurança das Manifestações Desportivas que não se vendessem bilhetes a alemães. O Eintracht recorreu e viu o Tribunal Administrativo Regional da Campânia dar-lhe razão, uma vez que considerava o perigo apenas “genérico” e a medida “desproporcionada”, pois proibia qualquer alemão de se deslocar a Nápoles na quarta-feira. Entrou aí em ação o prefeito de Nápoles com uma medida salomónica: só serão proibidos os residentes em Frankfurt. Isto é: os adeptos do Eintracht que vivessem em Berlim, Colónia, Estugarda, Munique... podiam ir ao jogo, mas os de Frankfurt teriam de ficar em casa. Ante esta proibição e não querendo ir outra vez para tribunal, não só porque o jogo já está aí como porque a desvantagem trazida da primeira mão (0-2) é bastante complicada de reverter, o Eintracht abdicou. “Não dividimos os nossos adeptos pelo código postal”, explicou o clube alemão. A falta de apoio pode vir a ser prejudicial amanhã, mas aqui joga-se muito mais do que um jogo. Joga-se o futuro do futebol. E é preciso haver quem diga que a prevenção pode até ser mais barata do que a ação mas que a pensar assim nada se teria feito na história da humanidade.