O triunfo dos grunhos
O problema não está nas reações a erros de arbitragem. O problema está nos erros, claro, e sobretudo no clima que se cria através das pressões que abrem caminho aos erros e legitimam as reações.
Há muito quem diga que só em Portugal é que temos polémicas como a de ontem, em Braga. Que só por cá é que assistimos a episódios lamentáveis como os que aconteceram a partir da expulsão de Luís Díaz, no SC Braga-FC Porto. Não é verdade. Infelizmente, um pouco por todo o Mundo, os erros de arbitragem dão azo a muita irresponsabilidade. Em Inglaterra, no último sábado, depois de um vermelho mal mostrado a Tomas Soucek, do West Ham, na sequência de um contacto não intencional, o árbitro Mike Dean recebeu ameaças de morte nas redes sociais, o que o levou a pedir escusa das próximas jornadas da cosmopolita e por cá sempre tão gabada Premier League. A crescente velocidade da comunicação e a facilidade de acesso a protagonistas – coisas boas – estão a conduzir ao triunfo dos grunhos, que os clubes de futebol têm a responsabilidade de travar. É urgente que o façam.
Ontem vi o jogo no sofá, porque a notícia acerca do resultado, com o resumo inserido, ia ser escrita – como foi – por um dos jornalistas que trabalha comigo. E a opinião ficaria, como fica sempre, para os espaços da manhã seguinte, sobretudo para o Futebol de Verdade, que vos convido a verem a partir das 12h30. Até isso foi suficiente para que, antes mesmo de ter dito ou escrito uma palavra sobre a expulsão de Luís Díaz, eu tenha sido alvo de várias acusações de clientelismo, favorecimento e desonestidade, bem como de insultos impublicáveis – alguns em mensagens privadas. É a “grunhice” no seu esplendor, a mesma que leva a debates infindáveis em threads com uns a dizer que só não ganharam porque tiveram um jogador mal expulso e outros a responder-lhes que só não perderam porque o guarda-redes adversário estava comprado. Aconteceu ontem, como já tinha acontecido na véspera, no Gil Vicente-Sporting. E muitas vezes antes disso. Isto não só não se aguenta como afasta cada vez mais gente – os que não estão para estes filmes – do futebol.
Dá que pensar nas razões para este clima. Muitas vezes recebo mensagens de leitores a pedir-me que expulse das minhas páginas nas redes sociais os que não se comportam devidamente e andam ali só para insultar. Quando isso acontece, respondo sempre da mesma maneira: que se entrasse por aí não faria mais nada na vida, porque isso se tornaria extenuante e emocionalmente esgotante – muitos insultos, na verdade, não chego sequer a lê-los. Além de que creio na liberdade de expressão, no direito dos grunhos a serem grunhos e depois a serem responsabilizados pela sua “grunhice”. A expulsão de Luís Díaz, por mais inconcebível que seja – e pronto, já ficaram a saber que a achei inconcebível – não pode explicar isto tudo. Porque a montante e a jusante há diversos comportamentos que servem como adubo – na verdade devia dizer estrume, mesmo, porque é a isso que cheiram – para este clima. Que, é justo que se diga, não é de hoje: já dura há uns anos, só mudam os queixosos. Mas que está a piorar de dia para dia, devido à mudança no contexto, com cada vez mais peso das redes sociais, onde todos, os responsáveis e os grunhos, vociferam o que lhes apetece.
Na sequência do caso Dean-Soucek, aconteceram várias coisas. David Moyes, o treinador do West Ham, foi à “flash interview” e à conferência de imprensa e disse-se “embaraçado” pela decisão, que começou quando o VAR chamou Dean a ver o incidente, portanto achando que ele era claramente para expulsão. Perguntaram-lhe o que ele achava e ele disse, assim, de forma educada. Depois, o cartão vermelho foi retirado pela Premier League, o que anulou o castigo. Parece que os ingleses não são suficientemente modernaços e não aderiram ainda à “doutrina do campo de jogo” do nosso Conselho de Disciplina, a mesma que vai agora afastar indevidamente Díaz e Javi Garcia do próximo dérbi do Porto e que já teria afastado Palhinha do dérbi de Lisboa, não fosse a “chico-espertice” da providência cautelar interposta pelo jogador do Sporting num Tribunal Administrativo. Por fim, Oliver Dowden, Ministro da Cultura no governo de Boris Johnson, anunciou que o executivo a que pertence pretende alterar a Lei dos danos online, “de forma a responsabilizar as empresas de redes sociais pelo que acontece nas suas plataformas”. Tudo aquilo que não acontece por cá, onde ainda ontem Pinto da Costa se atirou com toda a razão a João Paulo Rebelo, o Secretário de Estado do Desporto, pela inação que tem mostrado noutras matérias, sobretudo na gestão da pandemia em termos desportivos.
Porque, vamos a ver, grunhos há-os em todo o lado. Depois há é grunhos que sentem que são limitados na sua “grunhice” e grunhos que se sentem encorajados a assumi-la. Já expliquei isso aqui, no Futebol de Verdade de anteontem. Trabalho em jornalismo desportivo há 30 anos, já vejo futebol há 40 e já vi todos os clubes queixarem-se. Umas vezes com razão, outras sem ela. Umas vezes com mais urbanidade, outras mais na base da arruaça. Umas vezes com mais imaginação, outras com recurso a formas mais básicas de protesto. O que ainda não vi foi um clube, um único, que prescinda do direito à pressão mediática para retirar dividendos em ocasiões futuras. E, antes que perguntem, não estou a falar do que se passou ontem, da revolta no banco do FC Porto ou do comportamento – que condeno – de Sérgio Conceição com Carlos Carvalhal. Vou muito mais atrás, às raízes do pensamento que legitimam cenas assim. Porque quem quer que seja que não ande a dormir já está convencido de que isto está tudo comprado. Os grunhos já ganharam.