O trânsito no clássico
O FC Porto-Sporting acabou empatado. Em muitos locais já terá lido acerca dos incidentes que marcaram o final do jogo. Aqui vou explicar o que foi o jogo dos pontos de vista tático e estratégico.
Desde o final do FC Porto-Sporting que não se fala de outra coisa: da confusão final. De quem bateu mais e de quem fugiu melhor, quem eram os coletes azuis e os coletes laranjas, quem tem mais ou menos responsabilidade, se o árbitro se enganou mais para um lado ou para o outro, se para o desfecho final é mais relevante o penalti reclamado sobre Evanilson ou a expulsão de Coates. Não são temas pouco importantes e a eles me referirei, na segunda-feira, pelo menos no Futebol de Verdade. Hoje, aqui, no entanto, vou tentar explicar as estratégias de Sérgio Conceição e Rúben Amorim para o jogo e em que medida elas funcionaram melhor ou pior. Vou escrever sobre futebol – lamento se isso vos causa inconvenientes, mas já tinha decidido que ia ser assim.
Não houve surpresas nem nas equipas iniciais apresentadas pelos dois treinadores nem na forma como elas se dispuseram em campo ou se comportaram, com e sem bola. O FC Porto surgiu no seu habitual híbrido entre o 4x3x3 e o 4x4x2, fazendo uso da presença simultânea de Evanilson e Taremi na frente, ainda que desviando o iraniano para o corredor esquerdo, como forma de apertar o início de construção do Sporting e secar a via de abastecimento aos dois alas leoninos – do outro lado Otávio fazia a mesma coisa. E o Sporting no normal 3x4x3, que em momento defensivo se transforma num 5x2x3 – ainda que a presença de um (por comparação com Pedro Gonçalves) defensivamente mais disponível Nuno Santos no trio da frente tenha por vezes mascarado o sistema em 5x3x2 no momento defensivo. Mas vamos ver como se comportavam as equipas com e sem bola, analisando o início dos dois processos de construção e a forma como o adversário tentava impedi-los.
O FC Porto começava a jogar da forma habitual, projetando imediatamente os dois defesas laterais e recorrendo a um dos médios - neste caso foi Vitinha - para vir dar saída de bola atrás. O Sporting não fazia pressão forte a não ser quando a bola entrava no tal médio: e, logo no início do jogo, Paulinho chegou a recuperar ali uma bola, que depois Diogo Costa resolveu, defendendo o remate do ponta-de-lança leonino. No momento retratado pela imagem, os três da frente de Rúben Amorim estão em posição de expectativa: Paulinho à espera de ver quem vem receber a bola de Diogo Costa, para então apertar, como seria sempre ele a apertar caso a bola entrasse num dos centrais, aí auxiliado por Nuno Santos ou Sarabia; e estes dois a aguardar, mas com posicionamentos sobretudo destinados a cortar as linhas de abastecimento a João Mário e a Zaidu. Se este corte das vias de abastecimento falhasse, a responsabilidade passaria para Matheus Reis e Esgaio, que eram quem batia de frente com os laterais portistas. Aliás, na imagem vê-se que Matheus Nunes parece preocupado com o posicionamento demasiado recuado de Matheus Reis (que nem aparece no plano) e lhe pede que suba na ação de condicionamento.
Uma nota extra para o que parece ser espaço livre, nas costas de Nuno Santos e Sarabia, eventualmente explorável, seja por Otávio ou por um dos médios de Sérgio Conceição, mas é uma ilusão: porque, devido à presença condicionante de Nuno Santos e Sarabia, a bola nunca entraria ali direta, só por cima, e se assim fosse os dois médios teriam tempo para apertar também, e impedir a saída limpa por parte de quem quer que fosse lá do FC Porto.
O Sporting também apresentou a sua saída de bola habitual, circulando sempre por trás, de forma a atrair o adversário para depois, com um apoio anterior ou posterior, alargar o jogo ao corredor contrário. A linha de trás de Rúben Amorim, neste momento, é muito mais triangulada do que a de Sérgio Conceição. A bola entra sempre num dos centrais exteriores, que no caso da imagem é Gonçalo Inácio, e a este apresentam-se três possibilidades: ou joga no ala do seu lado (Esgaio), que surge próximo e igualmente atrasado no campo; ou joga no guarda-redes (Adán), de forma a rodar e tentar sair pelo lado contrário, forçando o adversário a bascular, ou joga no central do meio (Coates), que avança uns metros de forma a servir de ponto de apoio frontal e causa dúvida nas marcações contrárias. A ideia apresenta riscos, mas são riscos calculados, porque ainda que a equipa pareça sofrer uma, duas , três vezes, ainda que nalgumas ocasiões acabe por ter de bater longo e até para fora, de forma a não se colocar em situações embaraçosas, quando sai da pressão tem sempre muito espaço para explorar.
Perante esta saída de bola, falta definir o que faz o adversário. No clássico da Luz, o Benfica procurou promover o encaixe, com referências individuais de marcação - e deu-se mal, porque nesses casos basta um elemento ser ultrapassado para tudo ser posto em causa (além de que houve arrastamentos a abrir crateras na defesa de Jesus). Há quem não queira ir no engodo e procure sobretudo resguardar-se, ficando mais atrás, baixando o bloco e esperando o embate. O FC Porto foi ambicioso e acreditou que poderia recuperar a bola bem alto no campo e partir daí para a criação de situações de perigo, razão pela qual tentou atacar esta saída de bola de forma sempre muito agressiva, com cinco homens. Taremi e Otávio tentavam cortar as linhas de abastecimento aos alas, ao mesmo tempo que iam sem medos aos centrais exteriores se estes tivessem a bola. Vitinha e Fábio Vieira colocavam-se numa segunda linha, prontos a apertar também e, sobretudo, a ficar com a bola entre linhas em eventuais situações de transição ofensiva, enquanto que Evanilson se preocupava ao mesmo tempo com o central exterior que tivesse bola e em cortar-lhe a hipótese de rodar através do guarda-redes, ameaçando o espaço.
O FC Porto foi muito mais proativo na defesa alta do que o Sporting, mas a verdade é que isso raramente lhe deu situações de perigo - só causou mesmo sensações algumas de inconseguimento por parte dos três de trás leoninos, sobretudo Feddal, que por vezes teve de bater pela lateral para evitar perdas de bola. A partir de determinada altura, aliás, pareceu vir do banco a ordem para Feddal começar a bater longo na frente, de forma a evitar percalços. Mas desde que a equipa do Sporting não se intranquilize com os lances em que acaba por deitar a bola fora, esmagada pela teia do adversário, este estratagema acaba por lhe dar resultados, caso consiga superar esta primeira linha de pressão com êxito. Foi o que sucedeu, por exemplo, no lance do segundo golo leonino.
Neste lance, o FC Porto chega a dar a sensação de que recupera a bola, mas acaba por ser apanhado num momento de contra-transição. Quer isto dizer que a equipa azul e branca concentrou esforços na zona da bola, na pressão sobre o portador, mas que quando este conseguiu sair e ligar o jogo pelo corredor contrário, o ala que lá estava, sempre mais à frente do que aquele que está do lado da jogada, tem muito espaço para correr. É invariavelmente assim que o Sporting fere os adversários: aproveita-lhes a sanha de recuperação para os deixar desorganizarem-se e explora depois o espaço que eles deixam vazio.
Claro que a presença de muita gente em zonas avançadas serve também como forma de ser mais agressivo do ponto de vista atacante. Não me canso de dizer e escrever que o jogo é uno, que uma equipa ataca em função da forma como defende e defende em função da forma como ataca. No caso do FC Porto de ontem, isso teve ainda algumas implicações no comportamento dos leões. como se viu, por exemplo, no lance do golo de Fábio Vieira, nascido de uma situação em que a presença de tantos elementos azuis e brancos em zonas altas do campo acabou por empurrar os jogadores leoninos mais e mais para trás.
Conforme pode ver na imagem, tirada do momento em que Fábio Vieira chuta para o golo, o Sporting tem dez jogadores (incluindo o guarda-redes) nos últimos 25 metros do campo, sendo que oito desses homens estavam dentro da área. E se isso tem que ver com a colocação muito alta do FC Porto no campo - está toda a gente nos mesmos 25 metros à exceção dos dois defesas-centrais e do guarda-redes -, ao mesmo tempo implica uma certa alteração nos métodos habituais da equipa leonina, da qual pode ter nascido a descoordenação que levou a que ninguém se ocupasse da zona da meia-lua. Normalmente, o Sporting defende em 5x2x3, deixando os três da frente projetados, de forma a aproveitar momentos de transição atacante. Neste jogo, Nuno Santos teve um comportamento diferente do habitual em Pedro Gonçalves, baixando frequentemente para se juntar aos médios, também eles nem sempre a par - muitas vezes Ugarte vinha mais atrás e quem ficava para explorar momentos de transição era Matheus Nunes, de forma a explorar a sua passada larga nessa altura. Este golo do FC Porto nasce do modo como os dragões conseguiram abrir o espaço entre linhas na organização do Sporting: Taremi foi buscar a profundidade na esquerda, afundando a última linha leonina, tendo a bola depois entrado no corredor central, onde a segunda linha estava uns metros atrás do recomendado. A resposta aqui não passaria pelo recuo de Matheus Nunes e Paulinho, que aí a equipa ficaria sem referências de saída, mas sim pela subida dos médios.
O jogo, de qualquer modo, foi decorrendo nestas bases até à expulsão de Coates e às cartadas que os treinadores jogaram dos bancos. Com um a menos, o Sporting mudou para um 5x3x1, substituindo Paulinho por Slimani, mais capaz de ser referência solitária para bolas longas e até de eventualmente ganhar faltas das quais pudessem sair bolas paradas e a eventualidade de um terceiro golo. Antes, Rúben Amorim trocou Sarabia por Palhinha, passando Matheus Reis para central-direito, Inácio para central do meio, mantendo Feddal na esquerda e baixando Nuno Santos para ala esquerdo, mantendo depois os três médios (Ugarte, Palhinha e Matheus Nunes) como elos de ligação a Paulinho. Para evitar que a equipa baixasse demasiado, tentou alongar o jogo com Slimani em vez de Paulinho, corrigindo a linha de trás com Neto no lugar de Matheus Reis, derivando este para a posição original, à esquerda, em vez de Nuno Santos, que saiu. O homem a menos, no entanto, notava-se. Notava-se tanto na incapacidade de ligar o jogo e chegar de forma consolidada à frente, como no preenchimento dos espaços atrás. Se na primeira parte o FC Porto apostava sobretudo na procura do espaço entre as linhas leoninas, agora tinha à sua frente a possibilidade de, rodando por trás, aproveitar a largura.
Toda a estratégia de Sérgio Conceição passou, a partir dessa altura, por aí: largura. A primeira troca, de Vitinha por Galeno, ainda pressupunha o reforço do corredor central, onde Taremi passou a aproximar-se mais de Evanilson, baixando Fábio Vieira para médio-centro. Depois, com as trocas de João Mário por Pepê - que foi para lateral/ala direito - e de Uribe por Francisco Conceição - que foi para o lado direito, passando Otávio para perto de Vieira ao meio - o FC Porto quase passou a colocar-se num 2x4x4, com laterais projetados e dois extremos declarados a alimentar uma dupla de pontas-de-lança. A inferioridade do Sporting não se notava tanto atrás, mas na linha de meio-campo, onde a largura de Ugarte, Palhinha e Matheus Nunes não era suficiente para contrariar a linha formada por Pepê, Otávio, Fábio Vieira e Zaidu. Foi da junção destas duas situações que nasceu o golo do empate.
Em termos de posicionamentos, está tudo certo na linha do Sporting. Eventualmente, Palhinha estará um pouco adiantado em demasia, porque lhe caberia impedir que a bola entrasse entre linhas, mas certamente que o mais central dos três médios do Sporting estaria a controlar a posição de Otávio, que nem aparece no plano. Neto está onde tem de estar, para a eventualidade de ser preciso fazer uma cobertura ao dois para dois junto à linha lateral - não faria sentido tê-lo a assegurar superioridade na luta por uma bola aérea que neste momento não se sabia ainda se ia sair. O problema do Sporting é que o desequilíbrio já tinha sido criado antes, na forma como o FC Porto descobria o espaço na falta de largura do meio-campo leonino.
O empate final acabou, assim, por ter justificações válidas na forma como as duas equipas exploraram os pontos mais débeis do adversário. O Sporting ganhou vantagem através da conjugação da sua capacidade de atrair por um lado para sair do outro. O FC Porto justificou o empate quando, com um a mais, descobriu os espaços que os leões passaram a deixar à frente da sua linha de cinco. No fim mantiveram-se as distâncias, mas as duas equipas mostraram que estão aí para discutir a Liga até ao momento em que isso deixe de ser matematicamente possível ou necessário. Antes da confusão final, este até acabou por ser um clássico taticamente rico.
OBRIGADO ANTÓNIO, por haver programas como o FdV, que procura falar de futebol e incentivar as pessoas a mudar as mentalidades clubísticas.
O espectáculo deprimente ao que assistimos na sexta, vai muito além da paixão pelo futebol e que deveria envergonhar qualquer cidadão português.
Independentemente do clube que dedendemos não deveríamos aceitar estes tipos de comportamentos.
excelente!!!