O silêncio dos inocentes
Eu posso escrever que um clube tem razão e outro não. Os órgãos institucionais e os seus membros não devem fazê-lo. Porque quando se abre a caixa de Pandora, fechá-la é o cabo dos trabalhos.
Há quem diga que isso da coerência é tique de jornalista e que não é tão importante assim, que as pessoas não reparam se temos a mesma atitude em diferentes casos da mesma índole, mas ainda assim procuro manter uma forma de atuação que me leva, por exemplo, a não avaliar arbitragens de forma casuística neste espaço, deixando essa tormenta para o Futebol de Verdade, o direto que faço todos os dias às 12h30. E começo a ficar convencido de que se calhar é mesmo assim quando reparo que as instâncias que mais deviam preocupar-se com isso viram as costas à coerência e têm agenda marcadamente política nas suas intervenções. Vem isto a propósito, por exemplo, do caso Palhinha e do caso Corona, ainda que em pano de fundo surjam o caso Coates e o caso Nanu.
Queixa-se o Sporting, com razão, de que Sónia Carneiro, a diretora executiva da Liga, não tem nada que vir dar opinião, muito menos sob a forma de artigo escrito, acerca de um caso jurídico que está para ser resolvido e no qual, já o escrevi e já o disse antes, achei a atuação leonina uma “chico-espertice” não particularmente inteligente, pois agora o treinador anda todos os dias sem saber se conta com o jogador para a próxima partida. Queixa-se o FC Porto, com razão, de que Corona é uma espécie de “saco de pancada”, que apanha todos os dias com uma regularidade estúpida, que não está a ser devidamente protegido pelos árbitros, ainda que depois já seja mais complicado entender qual é o critério que os dragões querem ver aplicado aos seus jogos, se é o duro, que manda os adversários para a rua, ou o fofinho, que poupa os virtuosos aos amarelos. Ou se deve haver dois, um para virtuosos que não viram a cara à luta e outro para defesas que não são bons a driblar. A este respeito, porém, não há notícia de intervenção do Conselho de Arbitragem, como não houve no caso Nanu, em que ela era muito mais necessária, mas terá certamente ficado limitada a conversas dentro dos gabinetes.
Não é difícil simpatizar com a posição do Sporting no caso Palhinha, como não é difícil assumir o lado do FC Porto no caso Corona, pois os dois jogadores foram vítimas de um erro de facto dos árbitros de campo. Já me parece esticar demasiado a corda concordar com o que foi feito ou reclamado depois. É evidentemente impossível constituir um tribunal arbitral a cada vez que um jogador atinge o limite de cinco amarelos, para lhe garantir o direito constitucional à defesa, como quer o Sporting – quererá? – a propósito de Palhinha. Como é evidentemente impossível que os árbitros de campo sejam disciplinarmente duros com os sarrafeiros que derrubam avançados virtuosos como Corona e depois fechem os olhos no caso de estes serem também tesos na abordagem aos lances, como é o mexicano – e é isso que faz dele um jogador completo. Mas aqui estamos no plano da razoabilidade. E este nem sempre é atingido pelos adeptos mais vigorosos na defesa das suas cores. Nem, aparentemente, pelos órgãos oficiais do futebol português. E isso é que é grave.
A tomada de posição de Sónia Carneiro no caso Palhinha é difícil de entender por ser inédita no futebol português a propósito de um caso que está para ser avaliado pelo Tribunal Arbitral do Desporto e por poder constituir uma forma de pressão. Eu posso escrever que o Sporting não tem razão. A diretora executiva da Liga não pode. Porque daqui para a frente vamos ficar à espera do artigo da praxe sempre que houver um caso jurídico mais intrincado no futebol nacional. Da mesma forma, continuo à espera que o Conselho de Arbitragem da FPF se pronuncie, não tanto acerca dos amarelos mostrados a Corona ontem em Braga, que aí a doutrina não se divide muito, mas sobretudo a propósito do choque entre Kritciuk e Nanu, no jogo da jornada anterior, entre a B SAD e o FC Porto, que dividiu rigorosamente ao meio os seis ex-árbitros que julgam as decisões polémicas nos nossos jornais desportivos. Recordo que após a anulação do golo a Coates em Famalicão, o CA demorou menos de duas horas a manifestar uma posição pública, certamente por entender que ela podia ser útil do ponto de vista pedagógico. No caso do erro evidente de anulação de um golo ao SC Braga em Moreira de Cónegos – e ainda ontem Carvalhal falou disso – a explicação em torno da “calibragem” das linhas demorou umas três horas.
Já passaram quatro dias desde o choque entre Kritciuk e Nanu e continuamos à espera que o Conselho de Arbitragem mantenha a coerência na atuação. As caixas de Pandora têm este problema: quando se abrem, depois é o cabo dos trabalhos para as fechar.