O relâmpago de Bodø
Glimt, em norueguês, significa relâmpago. Esta é a história da tempestade perfeita que o martelo de Thor fez desabar no círculo polar ártico sobre a AS Roma de Mourinho.
Em Setembro do ano passado, quando o Bodø Glimt fez o Milan sofrer em San Siro, antes de perder por 3-2, numa eliminatória preliminar da Liga Europa, a emoção foi atribuída à suposta falta de qualidade daquela equipa do Milan. Um ano depois, todos sabemos que não foi isso. Os "rossoneri" lideraram a Série A italiana durante meses, acabando-a apenas atrás do Inter, e o Bodø Glimt bateu todos os recordes que havia para bater no futebol norueguês, a caminho de um aclamado primeiro campeonato ganho por uma equipa a Norte do Círculo Polar Ártico. Recorde de pontos, de golos, de vitórias, de vantagem para o segundo classificado... É o que quiserem. Tudo caiu no colo desta "equipa-elevador", que ainda por cima teve de lutar contra o preconceito que a sociedade norueguesa mantém face aos nortenhos. Por isso, quando, esta semana, a AS Roma de José Mourinho se deslocou a Bodø, para jogar uma partida da Liga Conferência, já sabia bem ao que ia. E os 6-1 com que os noruegueses brindaram a equipa romana viraram as atenções de toda a gente na Europa para este fenómeno recente no futebol nórdico, este relâmpago que o martelo de Thor fez desabar sobre os italianos.
"O jogo de San Siro foi o único que alguma vez revi. Fomos melhores do que o Milan nos últimos 15 minutos. Foi chocante vê-los de joelhos", disse Orjan Berg ao The National. Orjan, membro da segunda geração da dinastia Berg, que marca o Glimt desde os anos 70, é um dos filhos de Harald Berg, herói do clube que esteve lá para a primeira vitória na Taça da Noruega, em 1975, e pai de Patrick Berg, médio-estrela no atual plantel, já internacional norueguês e autor de um dos golos na goleada à AS Roma. Treina também uma das equipas jovens do Glimt, a base para o sucesso do clube. Não poderia ser de outra forma, tendo em conta as distâncias e os pequenos orçamentos envolvidos no futebol local. Bodø é uma pequena cidade a cerca de 1200 kms de Oslo. São precisas 16 horas de carro – ou pelo menos dois voos até que ao aeroporto local, gerido pela NATO – para lá chegar. O vizinho mais próximo de Glimt a competir na Eliteserien da época passada era o Rosenborg, uma vez que Trondheim está "apenas" a nove horas e meia (700km) de distância a sul. Podia até pensar-se em Bodø como no Muro da Guerra dos Tronos, não fosse o facto de o Tromsø IL ter sido promovido à edição deste ano da competição – e Tromsø está mesmo oito horas (530kms) mais longe, a Norte.
A peculiar geografia da Noruega e o preconceito nas mentes dos sulistas impediram mesmo equipas como o Glimt de competir na I Divisão do país até aos anos 70 ou de jogar a Taça da Noruega antes dos anos 60. "Fomos vítimas de bullying", considera Orjan Berg, revelando que em Oslo é possível encontrar anúncios para arrendamento de apartamentos que excluem os nortenhos como candidatos a inquilinos. "Pensavam que éramos apenas agricultores ou pescadores. E alguns ainda pensam assim", acrescenta. A verdade é que, até aos anos 70, as equipas do Norte nem sequer eram permitidas no escalão principal, quer por falta de capacidade futebolística, quer devido às longas distâncias, que dificultavam a deslocação dos adversários. O Mjølner, uma equipa de Narvik, nomeada em homenagem ao martelo de Thor, foi a primeira equipa do Norte a ser promovida, em 1971, mas desceu novamente em 1972, depois de terminar em último lugar na Liga. Isso parecia justificar as dificuldades que a Federação Norueguesa colocava às equipas do Norte: o segundo escalão era dividido em três grupos, sendo os vencedores dos dois jogados a Sul promovidos de imediato, enquanto o vencedor do grupo no Norte ainda tinha de vencer um play-off contra os segundos dos outros grupos.
Foi por isso que, quando o Bodø Glimt ganhou a Taça da Noruega, em 1975, jogava ainda na II Divisão. A equipa vencera o seu grupo em 1974 e 1975, sem derrotas e com apenas três empates no processo, mas tropeçara sempre nos play-offs. Mesmo depois de vencer o Vard por 2-0 na final da Taça de 1975, voltou a ser submetida a esse humilhante novo desafio em 1976. Mais uma vez, o Glimt ganhou o Grupo do Norte – um empate e nenhuma derrota –, só que agora bateu o Lyn Oslo e o Odd, para ganhar o direito de ser a segunda equipa do Norte admitida no principal escalão norueguês. E fê-lo com estrondo: na primeira temporada, o Glimt acabou a Liga em segundo lugar e chegou à final da Taça, perdendo ambas as corridas para o Lillestrøm. Desde esses tempos, têm vindo a subir e a descer, ganhando assim a reputação de "equipa-elevador". Despromovido em 1980, o Glimt esteve mesmo no terceiro escalão durante a maior parte dos anos 80, recuperando em 1992. A época seguinte terminou com a conquista da segunda Taça norueguesa, graças a uma vitória contra o Strømsgodset, com 2-0 na final. Na equipa desse dia estava Runar Berg, outro filho de Harald Berg, logo irmão de Orjan Berg. Este regressou da Suíça no ano seguinte para formar um trio de irmãos na equipa, já que nessa altura lá jogava também o recém-falecido Arlid Berg.
Despromovido em 2005, promovido em 2007, despromovido outra vez em 2009, promovido mais uma vez em 2013, o Glimt jogou e perdeu outras duas finais da Taça, em 1996 e 2003. O 15º lugar final em 2016 significou que o clube voltou a descer e que as gigantescas escovas de dentes amarelas, que os adeptos locais levam para o estádio desde os anos 70, não iriam ser vistas nos jogos de topo. Mas foi aí que a mesa se virou. O primeiro responsável foi Bjorn Mannsverk, um antigo piloto de caças no Afeganistão, que o clube contratou como treinador mental. Ao promover várias sessões individuais e em grupo, Mannsverk, que nem sequer era fã de futebol e dizia que o jogo o aborrecia, melhorou a equipa e ensinou os jogadores a concentrar-se no desempenho e não nos resultados. Alguns hábitos mudaram. Por exemplo: quando o Glimt sofre um golo, os jogadores juntam-se para falar sobre isso. "Nem sempre. Mas se precisarem, fazem-no. Isto é muito raro, penso eu", disse Mannsverk ao The New York Times.
Segundo responsável: Kjetil Knudsen, nomeado treinador do Glimt em 2018, depois de o clube recuperar o acesso à Eliteserien. Aos 49 anos, Knudsen não tinha qualquer experiência na I Divisão da Noruega, só tendo treinado o Hovding, o Fyllingsdallen e o Åsane antes de ingressar no clube como adjunto do treinador Aasmund Bjørkan. Após a subida de divisão, Bjørkan tornou-se diretor desportivo e Knudsen assumiu o papel de treinador, focando-se totalmente na formação de equipas, no aperfeiçoamento das táticas e no desenvolvimento dos talentos locais. "Pretendemos ter 40% do plantel oriundo do Norte da Noruega", explica Orjan Berg. E isso só é possível devido à estreita relação que o treinador mantém com os jogadores e à quase perfeita compreensão e execução que estes aplicam ao 4x3x3 "kamikaze" professado no clube. No Glimt, tudo está integrado, para que a equipa possa resistir à saída dos seus melhores jogadores sempre que o mercado de transferências abrir. A primeira temporada após o regresso à Eliteserien foi difícil e terminou com um modesto 11º lugar. No segundo campeonato, o de 2019 – na Noruega, a Liga joga-se de Abril a Novembro –, o Glimt liderou a tabela até meados de Agosto, cedendo finalmente aos argumentos mais fortes do Molde FK e acabando em segundo lugar. Nisso teve certamente alguma influência o facto de o extremo tunisino Amor Layouni ter partido para o Pyramids, no Egito, em Setembro, por uma 1,5 milhões de euros.
Em Janeiro de 2020, Knudsen também perdeu o guarda-redes brasileiro Ricardo Friedrich para o Ankaragücü, da Turquia, numa transferência gratuita, e o médio Hakon Evjen, para o AZ Alkmaar, na Holanda, por 2,5 milhões de euros. E em Setembro, depois da ameaça de surpresa na Liga Europa, em San Siro, o Milan contratou de imediato o jovem extremo Jens Petter Hauge, autor de duas assistências na noite, por cinco milhões de euros. Hauge está neste momento emprestado ao Eintracht Frankfurt. Mesmo assim, o Glimt não vacilou. A sua filosofia atacante – alguns jogadores chamam-lhe "kamikaze", rindo-se disso como os vikings antigos se riam do perigo com esperança na entrada em Valhalla – permitiu-lhe tomar a Liga de assalto. Kasper Junker, avançado dinamarquês contratado ao AC Horsens por 600 mil euros, foi o melhor marcador do campeonato, com 27 golos, e já saiu para o Urawa Reds, do Japão, por dois milhões de euros. O extremo dinamarquês Phillip Zinckernagel foi o melhor assistente (18 passes para golo), o terceiro melhor marcador (19 golos) e também já se foi embora, assinando pelo Watford FC, de Inglaterra – está neste momento emprestado ao Nottingham Forest, do segundo escalão inglês. A equipa de Knudsen perdeu apenas duas vezes em toda a época: além do jogo com o Milan, foi derrotada (4-2) pelo Molde FK, em meados de Outubro, quando isso já não importava muito, já que tinha 18 pontos de avanço, com apenas dez jogos para disputar. No final, o Glimt bateu os recordes de golos marcados na Liga (103, contra os 87 do Rosenborg, em 1997), de vitórias (26, contra 22 do Molde FK em 2014), de pontos (81, contra os 71 do Molde FK em 2014) e de maior margem para o segundo (19 pontos, contra os 15 do Rosenborg em 1995).
Depois da conquista do campeonato, já se sabia que o trajeto não ia ser fácil. Entretido com a Europa, o Glimt está a enfrentar mais dificuldades no plano interno, liderando a Eliteserien com apenas três pontos de avanço do Molde FK. Além disso, a equipa do Círculo Polar Ártico não passou da primeira ronda preliminar da Liga dos Campeões, afastado pelo Legia Varsóvia, da Polónia, com duas derrotas. Mas fez carreira depois na Liga Conferência. Começou por eliminar o Valur, da Islândia, o KF Prishtina, do Kosovo, e o Zhalgiris Vilnius, da Lituânia, de modo a garantir um lugar na fase de grupos, que lidera, com sete pontos em três jogos contra o Zorya, da Ucrânia, o CSKA Sofia, da Bulgária, e a poderosa AS Roma, que caiu no sintético do Aspmyra, perante 5652 espectadores atónitos, por um clamoroso 6-1. Erik Botheim, ponta-de-lança de 21 anos que o Rosenborg não aproveitou e chegou a Bodø a custo zero no início deste ano, fez dois golos a Rui Patrício – e já leva 19 na época. Ola Solbakken, extremo de 23 anos que está na terceira temporada no clube, fez outros tantos. Tudo somado, foi a maior goleada alguma vez sofrida por uma equipa de José Mourinho e mais um jogo que Orjan Berg talvez se sinta tentado a rever.
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Ótimo artigo!