O que podemos aprender com a crise espanhola
FC Barcelona, Sevilha FC e Atlético Madrid perderam em casa na primeira mão dos oitavos-de-final da Champions. A crise espanhola já não se anuncia. Está aí. E temos a obrigação de aprender com ela.
O FC Barcelona foi goleado (1-4) em casa por um Paris Saint-Germain que nem sequer é líder em França. O Sevilha FC perdeu (2-3) em casa com um Borussia Dortmund que tem sido bem menos que duvidoso na Bundesliga. O Atlético Madrid foi batido (0-1) em casa por um Chelsea que terá de lutar muito para chegar ao fim da Premier League num dos lugares de acesso à próxima Liga dos Campeões – batalhará com Liverpool FC e West Ham pelo único que parece disponível. E o Real Madrid visita hoje a Atalanta no meio de uma crise que nem tem ficado bem expressa nos resultados e de uma onda de lesões devastadora, que forçou Zinedine Zidane a viajar com uma série de miúdos da equipa B e leva as casas de apostas a considerar os italianos favoritos. De repente – e sim, sei que é prematuro considerar essa hipótese –, a Espanha pode ficar sem equipas nos quartos-de-final da Liga dos Campeões. E, suceda o que suceder nesta fase, já pode considerar-se altamente provável que perca o primeiro lugar do ranking da UEFA para a Inglaterra. Já percebem agora porque é que é de Espanha que vêm mais desejos de uma Superliga Europeia?
Houve sempre pelo menos uma equipa espanhola nos quartos-de-final da Liga dos Campeões desde 2006. Em seis dos últimos oito anos até lá estiveram três. A última vez que os espanhóis não marcaram presença nesta fase da competição foi em 2005, ano em que o futebol europeu era outra coisa – para que se entenda, o campeão europeu em título era o FC Porto, o último clube vindo de uma Liga fora das Big Five a conseguir levantar a “orelhuda”. Nas 20 edições deste século, Espanha meteu 43 equipas entre as 160 (26,8%) que jogaram quartos-de-final, a uma média de 2,15 por ano. Uma em cada quatro equipas nesta fase da prova vinha de Espanha e por aqui já começa a perceber-se porque é que os espanhóis têm sido líderes do ranking de clubes da UEFA: neste século, lideraram-no até 2007, altura em que foram substituídos pela Inglaterra, mas regressaram ao topo em 2013 e lá ficaram até este ano. Neste momento, com apenas um ponto de avanço (e tinham 30 há cinco anos…), nem seria necessária a hecatombe que está à beira de acontecer na Liga dos Campeões para se prever que vão ser novamente superados pelos ingleses.
É verdade que, apesar dos 0-4 com que a Real Sociedad foi batida em casa pelo Manchester United, o Villarreal CF e o Granada CF deverão continuar a representar a Espanha na Liga Europa – ainda que neste último caso a possibilidade de reação do SSC Nápoles não seja de desprezar inteiramente, com o 2-0 da primeira mão. Ainda assim, as campainhas de alarme soaram em Espanha bem antes da derrota ontem encaixada pelo Atlético Madrid face ao Chelsea. Há quem aponte razões físicas, como a falta de atleticismo das equipas espanholas quando confrontadas com rivais da Bundesliga ou da Premier League. “Eles pareciam aviões a nível físico”, comentou Imanol Alguacil, treinador da Real Sociedad, depois do jogo com o United, que desde logo deixou zero dúvidas acerca de quem seguiria em frente. E há quem se vire para outras questões, mais relacionadas com a capacidade para atrair os melhores jogadores, centrando o debate em torno de figuras como Mbappé ou Haaland. Ronaldo e Neymar já foram embora, Messi pode estar na porta de saída e, ainda que continuem a ver estes jogadores-bandeira associados aos seus maiores clubes nas primeiras páginas dos jornais desportivos com uma regularidade absurda, os espanhóis não acreditam que possam vir a conquistar o direito a tê-los na sua Liga. A realidade espanhola é outra, é a realidade de jogadores como Hazard, pago a peso de ouro mas fisicamente débil e constantemente lesionado, dessa forma arruinando todo o seu enorme potencial.
Ora, se a primeira questão pode resolver-se a um nível técnico e tático, através da mudança de filosofia dos treinadores – e lá, como cá, já se fala num debate entre todos –, a segunda já tem mais de administrativo e não tem grande saída. Por mais voltas que Javier Tebas dê à realidade, por mais cores diferentes que use para a pintar, a realidade é simples de entender: a Liga espanhola não motiva sequer metade do interesse que é internacionalmente angariado pela Premier League, o que tem reflexos nas receitas televisivas que chegam a uma e à outra. E por mais simpatia que ainda motivem nos adeptos, fruto de um passado glorioso, clubes como o Real Madrid ou o FC Barcelona foram dos que mais sofreram com a pandemia de Covid-19, o confinamento e a incapacidade de capitalizar com a presença dos adeptos no estádio. Era muito nisso que se baseava a pujança financeira por trás de políticas como as que levaram às contratações de “galácticos” por um Real Madrid que agora é prisioneiro desses jogadores e incapaz de se renovar ou a contratos tão ruinosos como o último feito a Messi pelo FC Barcelona. Os alemães e os ingleses também têm sofrido com este fator – só o Borussia Dortmund, por exemplo, já reportou que deixa de ganhar três milhões de euros por cada jogo em casa à porta fechada –, mas a diferença é que estão extremamente mais bem organizados.
É isso que os espanhóis já perceberam e é por isso que de Espanha têm vindo mais vozes a pedir uma Superliga Europeia, uma forma de anular a vantagem competitiva que os ingleses já conquistaram e vão agravar nos próximos anos. Trata-se, afinal de contas, da aplicação ao futebol de alto nível de um velho provérbio que faz sentido desde tempos imemoriais: se não podes vencê-los, junta-te a eles. Era isso que em Portugal já devíamos estar a fazer há alguns anos.