O que está em causa na revolução Wenger
A velocidade destes dias levou a que todos se centrassem no Mundial bienal. Mas nem é isso o fundamental. O Mundial a cada dois anos será, quanto muito, a forma de pagar a revolução que se impõe.
Consciente de que a coisa nunca será decidida por KO, Aleksandr Çeferin, presidente da UEFA, não perde uma oportunidade para marcar mais alguns pontos no combate que trava com Gianni Infantino, presidente da FIFA – e atenção que a frase podia perfeitamente ter sido construída ao contrário, que aqui não há favoritos. Sucede que o que está em causa neste momento é o plano de Arsène Wenger para a realização de um Mundial (e de um Europeu, já agora) a cada dois anos, coisa que o líder do futebol europeu já veio dizer que não faz sentido, porque o que faz um Mundial (e um Europeu, já agora) é a sua raridade. Çeferin não explicou em que lógica entra aí a criação da Liga das Nações, mas provavelmente não devem ter-lho perguntado. Ora, não sendo eu apoiante da ideia de um Mundial a cada dois anos, até acho que ela pode servir para pôr um fim à insustentável (des)organização que subsiste no calendário do futebol internacional por estes dias.
Mas antes de explicar, deixem-me dizer-vos o que está em causa. Arsène Wenger, de quem devem lembrar-se por ter sido treinador do Arsenal durante anos a fio, tem agora o muito mais pomposo cargo de diretor de desenvolvimento do futebol mundial, na FIFA. A Wenger até podem apontar muitos defeitos, como o de não ter ganho tanto como devia enquanto treinou ou o de ter deixado definhar uma super-equipa do Arsenal, não assegurando a devida qualidade dos substitutos, mas há um de que ninguém certamente se lembrará: o francês nunca foi desorganizado. Ora uma das propostas agora defendidas por Wenger passa por uma reorganização do calendário internacional a partir de 2024, o ano para o qual já está marcado o Europeu da Alemanha. “Quero melhorar a frequência das competições, deixando-me guiar pela simplicidade, pela clareza do calendário e pela vontade de não organizar a não ser provas que tenham um verdadeiro sentido, que permitam melhorar o nível do futebol”, afirmou Wenger ao L’Équipe.
E se é verdade que aquilo que mais chama a atenção é a realização de um Mundial (e das diversas competições continentais) a cada dois anos, levando a que todos os anos tenhamos, alternadamente, um Mundial e um Europeu, essa não é a base. Mas esse não é o fundamento da revolução. “A ideia de partida é agrupar os jogos de qualificação em duas grandes janelas, em Outubro e Março”, explica Wenger. “É reduzir o total de jogos de qualificação, agrupá-los, e no final da época organizar um Mundial ou um campeonato de cada confederação. Entre as duas janelas de qualificação, os jogadores passariam o ano todo nos clubes”, afirma ainda o agora dirigente, que desta forma dá resposta a um dos grandes problemas do futebol internacional da atualidade: o constante “vai-vem” dos jogadores entre os clubes e as suas seleções. Todos os meses acontece isto: o jogador acaba um jogo pelo clube e vai apresentar-se na seleção; chega à seleção e o selecionador queixa-se de que daí a dois dias tem jogo e não tem tempo para treinar; joga pela seleção três jogos em seis dias (portanto sempre sem tempo para treinar) e regressa ao clube, muitas vezes em véspera de jogo importante (e sem tempo para treinar). Tudo agravado quando se trata de jogadores de outros continentes, tornando as deslocações mais demoradas.
É preciso que alguém diga que isto não faz sentido nenhum. E não faz sentido mesmo que se reduza o total de jogos que um futebolista tem de enfrentar durante o ano, dessa forma aumentando o intervalo entre eles. Este constante “vai-vem”, a continuada mudança de chip entre equipas a que um jogador é sujeito todos os meses, é um atropelo aos princípios de excelência que o futebol de elite defende. Claro que, colocados ante o discurso de Wenger, todos os que emitem opinião vão logo à procura do que pode ser mais disruptivo, do título mais bombástico, de algo com que possam indignar-se, que os dias de hoje são os dias da indignação e um tipo só conta para alguma coisa se estiver indignado. Já ouvi e li muitos comentários de gente que certamente nem se deu ao trabalho de ler a sustentação da ideia de Wenger e se fixou nesse monstro que é o Mundial de dois em dois anos. Mas, se querem que vos diga, neste momento, nem sei se essa ideia foi lançada para cima da mesa só a pensar no lucro – caso em que é naturalmente condenável – ou se foi uma simples jogada estratégica, desenhada para que depois dela se possa abdicar, ganhando outras coisas, como a criação de um calendário internacional que faça sentido.
Há uns 15 anos já escrevi sobre as então crescentes dificuldades de articulação de calendário entre clubes e seleções e, numa reportagem que contava com declarações de Carlos Queiroz, à data adjunto de Alex Ferguson no Manchester United, propus a divisão do calendário do futebol internacional em duas grandes janelas, concentrando os jogos de seleção todos em mês e meio, no máximo dois meses, e mantendo os jogadores nos clubes durante o resto da época. Isto daria a todos (aos treinadores de clube e de seleção) tempo para trabalharem de forma muito mais consolidada e pouparia aos jogadores o desgaste das viagens constantes e tanta confusão gerada pelas ideias diferentes num e noutro contexto. Havia, à partida, um grande problema: quem paga? É que mesmo que as federações se responsabilizem pelos salários dos internacionais nos dois meses que os têm ao seu serviço, haverá todo um conjunto de jogadores que não vão às seleções e que, nesse período, não poderiam fazer mais do que participar em “competições menores”, com menos interesse do público e, logo, menos receita.
Não sou defensor de um Mundial de dois em dois anos. Acho que não precisamos disso – ainda que se ele vier possa encontrar méritos no tema. Mas há duas coisas que não farei. Uma é negar à partida uma proposta sem lhe conhecer os detalhes. Outra é fazê-lo acusando o seu proponente de só pensar no dinheiro, quando o dinheiro está aí, faz parte do nosso mundo, e a sua falta é o principal entrave a que isto funcione de forma mais articulada. Vai-se a ver e o Mundial a cada dois anos é mesmo a única forma de pagar uma revolução que faz falta a todos.