O quatro em um de Benzema
O francês pôs o Real Madrid nos quartos-de-final da Champions, superou Di Stefano e Raul em listas de goleadores e validou a escolha de Mbappé. E mostrou que o que faz uma equipa é a sua alma.
Karim Benzema escolheu minuciosamente a data para ultrapassar Alfredo Di Stefano na lista dos maiores goleadores da história do Real Madrid e Raul na tabela dos melhores marcadores do clube na Taça/Liga dos Campeões. O hat-trick frente ao Paris Saint-Germain, que virou uma eliminatória que já parecia perdida, a três quartos de estar concluída, trouxe à memória dos mais velhos o medo cénico que os adversários tinham do Bernabéu, quando lá jogavam Santillana, Sánchez ou Juanito e as remontadas europeias se tornaram famosas. Se Mbappé, a estrela francesa do PSG, que ainda não renovou contrato e se diz estar a caminho do Real Madrid no Verão, tivesse dúvidas, depois de ter – quase sozinho também – encaminhado esta eliminatória para o lado parisiense, com dois golos, elas poderão ter ficado dissipadas com a manifestação do que faz uma equipa e ainda falta ao PSG: a alma. “Asi, asi, asi gaña el Madrid”, cantaram a uma só voz os milhares de adeptos presentes no estádio, na euforia da vitória, sem arredar pé.
Há vários componentes a retirar da vitória do Real Madrid, ontem. Um é estritamente pessoal e manda glorificar a noite de Benzema, mais uma noite de Benzema. O francês viveu muitos anos na sombra de um astro maior – Cristiano Ronaldo – mas soube sempre ser, nessa altura, o jogador de que a equipa precisava. Não se encolheu quando viu o companheiro Luka Modric ganhar uma Bola de Ouro, sobretudo porque os problemas de balneário o afastaram a ele do Mundial de 2018. E tornou-se nos últimos dois anos a referência máxima de uma equipa que será sempre grande. Ontem foi fundamental como líder de um grupo que parecia eliminado, com o 0-1 da primeira mão a somar-se a outro 0-1 ao intervalo da segunda. Mas Benzema foi o jogador completo que é. Pressionou Donnarumma para o forçar a errar no lance do golo do empate, apareceu com uma bela desmarcação no final do segundo de dois passes magistrais que Modric fez na jogada do 2-1 e marcou o 3-1 com uma finalização ao nível dos melhores goleadores. Benzema é, provavelmente, o mais completo dos avançados – não é tão rápido com Mbappé, não é tão bom finalizador como Lewandowski, não é tão técnico como Messi, mas junta os melhores atributos de todos em doses suficientes para ser decisivo a este nível. E ontem não só superou Raul no total de golos pelo Real Madrid na Liga dos Campeões (67 a 66), como ultrapassou Di Stefano nos golos marcados pelo clube em todas as competições (309 a 308).
Ao escalar mais um degrau no sentido do topo da história do Real Madrid, Benzema mostrou que esta se renova em permanência. Que aquele é um clube que não desaparece das grandes decisões, mesmo que Di Stefano e Raul tenham deixado de jogar e que Cristiano Ronaldo – que lidera todas as tabelas – tenha decidido ir jogar para outro lado. Esta alma madridista é algo que faz parte do sucesso das equipas que vestem a camisola merengue. Não é algo de tangível, algo que se possa agarrar. Durante duas horas e meia das três horas que durava a eliminatória, o PSG foi melhor do que o Real Madrid, mas a última meia hora de alma madridista foi suficiente para afastar os milhões do Qatar do sonho de ganhar a Champions. No início da época, quando começou a falar-se com mais insistência na mudança de Mbappé de Paris para Madrid no momento em que acabasse o seu contrato, houve quem dissesse que o jovem astro francês não suportaria a ideia de ficar na sombra de Messi e Neymar, que queria mudar por puro egoísmo. Não acreditei. Houve, também, quem lhe apontasse alguma falta de noção, porque não há nada melhor para os jogadores do que ganhar troféus e, acima de todos, os mais importantes, como a Liga dos Campeões. Ora não me parecia haver melhor forma de ganhar a Champions do que numa equipa com Messi e Neymar. Estava – estávamos – enganado. Porque por mais estrelas que o Paris Saint-Germain vá acumulando, há algo que não se compra, que é a tal arma. Esta leva tempo, precisa de história como forma de unir e solidificar tudo. O tempo que o PSG não tem, porque quer ganhar já.
A forma como a equipa do PSG se desuniu na última meia-hora do jogo de ontem mostra essa falta de história, de alma, de existência enquanto entidade superior ao que se passa num campo de jogo. Messi desapareceu para o lado direito, Neymar perdeu – e não foi capaz de recuperar – a bola que deu o segundo golo, Mbappé parecia atropelado. E isto, sendo em boa parte fruto da tal falta de pedigree coletivo de um clube recente, esmagado pela história de 60 anos de glória europeia do seu adversário, também tem o nome do treinador escrito em letras garrafais. O PSG tem muitos problemas, precisa de entender que até pode chegar ao topo através da lista de compras mas que o mais normal é isso demorar algum tempo, mas além de tudo isso tem um problema de liderança. A “moral” de Maurício Pochettino nas altas esferas do futebol europeu é uma coisa para a qual nunca encontrei explicação. Em quatro anos e meio no Espanyol, ano e meio no Southampton FC, cinco anos e meio no Tottenham e mais ano e meio no PSG das estrelas, ganhou uma Taça de França – e perdeu a Ligue 1 para o Lille OSC. E, no entanto, parece que anda meio mundo louco atrás dele, com o Manchester United na primeira fila de pretendentes.
Há quem diga que quando os jogadores são muito bons nem precisam de treinador. Eu acho precisamente o contrário. Quanto melhores são os jogadores, mais necessária é a presença de um líder que seja capaz de unir todas as valências através de uma ideia. É essa a forma de um dia ter aquilo que tem o Real Madrid – alma.
Benzema é dos avançados mais subvalorizados do futebol atual. Não lhe conheço a personalidade extra futebol ou nos treinos, mas o seu rendimento constante ao mais alto nível durante tantos anos justificavam outro reconhecimento. Mesmo quando Ronaldo estava no Real, Benzema era vital para o pleno funcionamento daquele ataque. E com a saída de Ronaldo, assumiu um protagonismo que se calhar muita gente não esperaria.
Não sou particularmente fã do Real Madrid, mas há que reconhecer o mérito da presença constante nas decisões.
Quanto ao PSG, provou-se uma vez mais que não basta despejar milhões num plantel para garantir êxito. Além de que Pochettino é poucochinho para este nível. Ainda não provou nada que justifique tanto alvoroço à volta do seu nome.
Por fim, caminhamos para mais uns quartos de final com os mesmos de sempre e a confirmação da atual superioridade das equipas inglesas.
Benzema para mim e ainda antes de vir para Madrid, é um avançado e matador do melhor que temos no futebol moderno.