O PSG e a soberba inglesa
Carragher diz que Neymar e Mbappé não deviam poder jogar numa Liga medíocre como a francesa. Mas os factos dizem outra coisa. A soberba continua a impedir os ingleses de ver a realidade. E é pena.
Os quartos-de-final das competições europeias consumaram a ultrapassagem da Inglaterra à Espanha no topo do ranking de clubes da UEFA: os ingleses entraram nesta ronda a par dos espanhóis, estão já 1.286 pontos à frente e não só verão esta vantagem aumentar até final da época, porque têm o dobro (quatro a duas) das equipas em prova, como vão disparar na liderança na nova temporada, pois ela implicará o desperdício das pontuações de 2016/17, época em que os espanhóis se superiorizaram por cerca de cinco mil pontos. Todos estes factos somados funcionam como uma espécie de convite ao revivalismo do início dos anos 80, do período pré-Heysel, em que os ingleses mandavam no futebol Europeu, na altura sem a massiva influência continental que mostram hoje, como levam gente que então era jovem mas hoje tem responsabilidade a dizer tolices destinadas a inflar de ar o peito de adeptos que depois têm uma noção totalmente errada da sua própria grandeza.
A Premier League é a liga mais forte da Europa – e é também a globalmente mais rica, mesmo que lhe subtraiamos os milhões do Qatar, do Abu Dhabi ou dos oligarcas russos, porque é a que mais receita gera – mas é falso que os seus clubes sejam globalmente superiores aos continentais. Esta semana, Jamie Carragher, ex-defesa do Liverpool FC e atual comentador da Sky Sports, disse que “jogadores com a qualidade de Neymar e Mbappé não deviam jogar no Paris Saint-Germain nem na Liga francesa, que é uma Liga medíocre”, transformando-se no porta-voz da soberba inglesa. Esta soberba parte da observação do topo do icebergue para julgar que toda a sua base de gelo é imensa, mas engana-se. O meu convencimento é o de que os ingleses têm neste momento quatro ou cinco equipas que seriam fortes candidatas ao título em qualquer Liga Europeia – Manchester City, Manchester United, Chelsea, Liverpool FC, eventualmente Leicester City e Tottenham, embora nestas duas eu já tenha mais dúvidas – mas a verdade é que mais nenhuma ganharia a Liga francesa. Ou até a portuguesa, que aos olhos deles será ainda mais medíocre.
Os factos, nestas coisas, são sempre uma chatice. Facto número um: o Paris Saint-Germain corre sérios riscos de não ganhar a Liga francesa, pois segue três pontos atrás do Lille OSC, enquanto que o Manchester City passeia na “fortíssima” Liga inglesa, onde tem onze pontos de avanço sobre o segundo. Facto número dois: é verdade que, este ano, Inglaterra tem duas equipas nas meias-finais da Champions, contra uma francesa, mas ainda no ano passado foi a França que lá meteu dois representantes – Paris Saint-Germain e Olympique Lyon – contra… zero de Inglaterra. Facto número três: nas últimas dez eliminatórias europeias entre equipas inglesas e francesas, envolvendo PSG, mas também Olympique Lyon, AS Mónaco, AS Saint-Etienne e Stade Rennes, os franceses levaram a melhor seis vezes, contra quatro dos ingleses. Aliás, neste facto quase nem precisamos de França: basta recorrer a Portugal. Nas últimas dez eliminatórias europeias entre equipas inglesas e portuguesas, todas jogadas desde 2011, o saldo é favorável aos ingleses mas por um marginal 6-4. E nas dez anteriores, entre 2005 e 2010, há mesmo um empate (5-5). Sim, que ainda muito recentemente o Benfica eliminou o Liverpool FC ou o Tottenham, o FC Porto eliminou o Manchester United (imediatamente antes até destes últimas 20 confrontos), o Sporting afastou o Manchester City ou o Everton e o SC Braga arrumou também com o Liverpool FC.
A insularidade sempre deu aos ingleses para estas coisas, só lhes faltando mesmo a distância do resto do Mundo que têm, por exemplo, os norte-americanos, que iam ao ponto de chamar aos vencedores dos seus campeonatos – NBA, NFL, NHL, MLB… – “champions of the world”. Porque, naturalmente, ninguém no Mundo poderia sequer equiparar-se-lhes. Esta soberba inglesa, baseada na observação do enorme poderio interno que demonstram as suas equipas mais dominantes, como o Liverpool FC dos últimos dois anos ou o Manchester City desta época, depois leva-os a inquietantes choques com a realidade, com os quais, no entanto, eles tendem a não aprender. E é pena. Porque a Premier League é um fenómeno inigualável no Mundo do futebol. Até pelo pedigree de inventores do jogo, os ingleses tinham a obrigação de o entender melhor do que qualquer outro povo, mas alguns ainda preferem olhar para o seu próprio umbigo e não entender que não são o Liverpool e o City que têm estado muito fortes – são todos os outros, sobretudo os que andam de meio da tabela para baixo, que estão cada vez mais fracos, apesar dos orçamentos brutais de que vão dispondo. E, pelo menos para mim, isso é que é uma Liga medíocre.